Bauer, espumando ódio, desligou o telefone e perguntou na portaria do Hotel se o restaurante ainda estava aberto. Recebeu como resposta que já estava fechado, mas o bar não, poderia pedir um sande (sanduíche no português de Portugal). Bauer foi até o bar e sentou. O garçom, também branco e português, lhe perguntou: “O que vamos comer?”. Bauer, ainda com raiva, pensou: “Quem vai comer sou eu, você vai servir!”. Mudou de ideia e resolveu ser educado com o garçom, que, afinal de contas, não tinha nenhuma culpa da imbecilidade do presidente do São Paulo. “O que é possível fazer de comida agora?”. O garçom, sempre solícito, respondeu: “Um prego”. Bauer pediu para que explicasse o que era um prego. O garçom foi rápido: “É um pão com bife”. Bauer pediu dois e que colocassem uma fatia de queijo e um ovo dentro de cada um. O garçom: “Ora pois, pois, será uma bela combinação! O que o senhor vai beber? Com esse calor sugiro uma cerveja estupidamente gelada, recebemos hoje um carregamento da Sagres”. Bauer assentou com a cabeça.
Enquanto esperava pelos pregos, a estupidez do presidente do São Paulo não lhe saía da cabeça. “Como ele só vi Pelé, e o sujeito disse que eu estou bêbado. Vou é me embriagar com essa tal de Sagres”. Cinco minutos depois, o garçom chega com os dois pregos. Bauer pede mais uma cerveja e enquanto o garçom ia buscar notou que o cozinheiro, branco e português também, estava no balcão, olhando para ele, que era o único frequentador do bar naquela hora.
O garçom e o cozinheiro, na falta do que fazer, iniciam uma conversa. Falavam de futebol e Bauer começou a prestar atenção no diálogo. O garçom era adepto (torcedor) do Benfica e o cozinheiro do “O Belenenses” (é assim a grafia do terceiro time de Lisboa). “Domingo, vamos ganhar, o Benfica está desgastado fisicamente, jogando pela Copa de Campeões da Europa, e está se borrando de medo do Barcelona e de seus húngaros; além disso, tem um brasileiro chamado Evaristo que faz “golos” em todos os “prélios”. O nosso “mister” Otto Glória vai preparar bem a ‘equipa’”. “Tais louco, o gajo! No estádio da Luz, tua equipa não tem nenhuma chance. O tal Otto Glória, que por sinal já passou pelo meu Benfica, ‘não faz o pé do Béla Gutmann’. O judeu-húngaro é o melhor ‘mister’ do mundo”, por ande andou sempre foi campeão”.
Quando ouviu o nome de Béla Gutmann, Bauer iluminou o rosto, abriu um sorriso e gritou alto: “É ele!” O garçom e o cozinheiro não entenderam nada e Bauer pediu para assinar a nota da despesa. Antes das oito da manhã, estava na frente da sala da senhora telefonista.
“A senhora telefonista tem a lista telefônica de Lisboa?” “É claro que sim, temos o ‘catálogo’ da última edição. O Hotel assina o catálogo de Lisboa e do Porto, estamos sempre atualizados”. “Pode emprestar?”. “É evidente”. Bauer procura e acha o número do Sport Lisboa e Benfica e o anota num papel. A senhora telefonista, antes que Bauer lhe pedisse alguma coisa, pegou o número e disse: “Para Lisboa é bem mais fácil. Antes do meio dia, o senhor vai conseguir falar”. Bateram os ponteiros das doze da manhã e a ligação ainda não tinha sido completada. Bauer ficou preocupado, às quatro da tarde (horário local), a Ferroviária sairia do hotel para o aeroporto. Perguntou qual era o horário em Lisboa e a senhora telefonista informou: “Em Lisboa, dez da manhã”. A preocupação de Bauer aumentou. “Só falta a ligação chegar na hora em que Béla Guttmann estiver almoçando. Aí, depois estarei num avião e não vou conseguir falar com ele”. A uma da tarde, a senhora telefonista avisou que a ligação estava completada.
Bauer pegou o telefone e foi atendido pela telefonista do Benfica. Pediu para falar com Guttmann, que ainda estava no Estádio da Luz. Assim que foi avisado que Bauer estava ao telefone, Guttmann pensou: “O que será que ele quer?” Mas foi correndo atender a ligação. Conversaram uns bons vinte minutos e, ao final, Guttmann agradeceu e desejou sorte ao antigo jogador e amigo de longa data. Ficou pensando: “Bauer é um querido amigo e um sujeito de uma honestidade ímpar. Não iria ligar de Lourenço Marques se não fosse assim tão importante. É duro acreditar que joga quase tanto como Pelé, mas é melhor eu tomar as providências”. Foi falar pessoalmente com o presidente do Benfica.
“O senhor Bauer é um gajo de confiança?”. Guttmann respondeu que era um sujeito seríssimo e da mais absoluta confiança. “Então, temos que tomar urgentemente as medidas que a questão impõe!”. O presidente do Benfica pediu uma ligação para o presidente da filial do Benfica em Lourenço Marques. Quatro horas depois, os presidentes do Benficão e do Benfiquinha conversavam ao telefone.
“Se conheço o tal Eusébio? É evidente que sim, ele sempre nos enche de golos; no último jogo, fez quatro, mas o árbitro anulou um, perdemos de 3×1”. “Ainda não está em Lisboa porque o Sporting não paga o que a mãe quer para autorizar o ‘puto’ (os ‘piás’; no português de Portugal são chamados carinhosamente de putos) a viajar”. “Entendi, procurar a mãe e pagar até 500.000 escudos”. “Não é muito dinheiro, meio milhão?”. “Se o senhor diz que não é, nem se discute mais isso”. “Amanhã cedo, vou no Mafalala e descubro a casa. Entrego o dinheiro e levo a ‘negra’ ao Juiz de menores para assinar a autorização da viagem”. “O juiz é benfiquista de coração, vai manter sigilo absoluto. Quando os leões ficarem sabendo, o puto já estará em Lisboa, no Estádio da Luz”. “Vou ao aeroporto com ele e pego o primeiro avião para Lisboa. A missão será cumprida”.
Missão cumprida, e por 250.000 escudos. Foi a quantia que Anissabeni pediu. Com o dinheiro iria comprar uma casa decente no Mafalala e sair do barraco onde morava a família. Ainda sobrava um troco para comprar mais comida para os filhos até o resto do ano. Foram ao Juiz de Menores e o benfiquista autorizou na hora. Antes de irem ao aeroporto, a mãe fez muitas recomendações a Eusébio. Obedecer ao “mister” e aos dirigentes do Benfica, não se meter em confusões, não andar com más companhias, nas folgas voltar no horário marcado, não mentir, não chorar de saudades, vencer na vida para tirar a família da miséria em que viviam, mandar, de vez em quando, um dinheirinho para ela e os irmãos e irmãs. Eusébio não esqueceu de nenhum dos conselhos da mãe, principalmente do último. Todo mês, Anissabeni ia ao Banco de Portugal, em Lourenço Marques, buscar os muitos escudos que Eusébio lhe mandava de Lisboa.