Na semana passada, Jair Bolsonaro veio de novo com mais uma de suas falas constrangedoras, quando procura justificar algo e acaba expondo de forma brutal seu despreparo. Em discurso na inauguração de uma ouvidoria do governo federal, ele disse que “não nasceu para ser presidente” e que o cargo é “só problemas”. Falando sobre o desconforto com as obrigações do cargo, ele veio com essa: “Não me sobe à cabeça o fato de ser presidente. Eu me pergunto, eu olho para Deus e falo: O que eu fiz para merecer isso? É só problema, mas temos como ir em frente, temos como mudar o Brasil”.
A situação desse político atordoado, às voltas com as obrigações de um cargo muito além de sua capacidade lembra bastante a figura de Mr. Chance, personagem de um filme que as novas gerações desconhecem. Todo mundo devia assistir esta obra-prima, mais que pertinente ao que vivemos nos dias de hoje. O filme é “Being there” ou “Muito além do jardim”. O protagonista ficou por conta de Peter Sellers, espantosamente perfeito no papel, como acontece em todos os filmes em que aparece. É uma comédia que exige na construção da personagem central muita capacidade técnica de atuação. Mr. Chance tem que ser convincente, embora tudo o que ele diz e propõe seja próprio de um homem que passou toda a vida isolado da realidade. O desafio resolvido de forma muito hábil pelo grande ator é que embora dizendo os maiores absurdos, o protagonista não pode ser tomado como um idiota qualquer.
O filme é extraído de um livro excelente, de um dos escritores mais singulares que já existiu, o polonês Jerzy Kosinski, que viveu nos Estados Unidos. Foi dirigido por Hal Ashby. O roteiro é também de Kosinski, inteiramente perfeito, especialmente na construção de Mr. Chance, que na obra escrita é de uma síntese primorosa. Editado no Brasil, aqui é atualmente uma raridade. Kosisnki tem outros livros muito bons, impossíveis de serem encontrados neste deserto cultural que virou o Brasil.
Mr. Chance é um homem totalmente ingênuo. Passou toda a vida como jardineiro em uma mansão, onde seu único contato com o mundo era pelo que via na televisão. Viveu isolado desde a infância neste lugar cercado por muros altos, até que seu patrão morre e ele é obrigado a deixar a casa. Depois de ser atropelado por um magnata passa a ter contato com industriais e dirigentes políticos. A partir daí, tudo o que ele diz vai sendo interpretado como declarações geniais e propostas políticas de grande poder de resolução. Acontece que ele apenas repete em outros contextos o que passou a vida assistindo na televisão. E mesmo quando Mr. Chance fica calado por não compreender o que lhe pedem, alguém encontra uma compreensão que se encaixa de forma esclarecedora em seu silêncio. O livro é uma crítica profunda à falta de qualidade da comunicação de massa. Trata também do vazio intelectual da política. É uma visão pioneira, pois o filme é de 1979.
Na política, Bolsonaro é o próprio Mr. Chance, com a ressalva de que, ao contrário desta personagem de ficção, nosso presidente é altamente ambicioso e sem nenhum escrúpulo em se dar bem, aproveitando as chances que aparecem. Outra diferença muito grande é que as facilidades de Bolsonaro como Mr. Chance se esgotaram com sua eleição. Até ser eleito ele podia dizer as maiores barbaridades, sem que houvesse a obrigação de ter que mostrar o funcionamento na prática. O que temos agora, neste desconsolo e no visível apavoramento do presidente é o segundo episódio de Mr. Chance, que é claro que o filme não teve. Porém, a vida real segue implacável.
Do mesmo modo que acontece no filme com Mr. Chance, até a eleição de Bolsonaro, cada declaração estúpida que ele dava — e foram tantas! — era logo interpretada como uma resposta objetiva a determinado problema brasileiro. Claro que houve também um esperto aproveitamento político, mas a verdade é que era de forma natural que Bolsonaro ia encaixando suas grosserias. Desse modo, ele acabou sendo visto como um sério demolidor do politicamente correto, implacável com os bandidos da política e também do crime comum, o homem que iria colocar o país numa era de equilíbrio moral e político. O candidato de uma direita tosca foi amoldado ao sonho conservador do fim do aparelhamento das instituições públicas e do desmascaramento do discurso esquerdista da proteção de minorias, eliminando de uma tacada esta ferramenta perigosa da instituição do comunismo em nosso país.
Claro que o que era atacado com grosserias e propostas simplórias por Bolsonaro tinha solidez real, como o que também ocorria com as questões resolvidas por Mr. Chance apenas com uma frase. Cabe fazer um paralelo entre ambos no prestígio alcançado sem exame algum dos problemas, apenas pelo entusiasmo popular produzido por comentários estúpidos. Porém, as semelhanças terminam quando Bolsonaro é obrigado a enfrentar a obrigação pessoal de demonstrar na prática o funcionamento de sua visão muito simples para a solução de complexos problemas nacionais. É neste segundo episódio do nosso Mr. Chance que estamos há um pouco mais de três meses. E até que não levou tanto tempo assim para os brasileiros perceberem que se enganaram com alguém que foi suficientemente estúpido para não medir as conseqüências de chegar a um cargo executivo de tanta responsabilidade, munido apenas de suas concepções do baixo clero da política.
Como eu disse, não houve um segundo episódio para Mr. Chance — quase escrevia “Mr. Chance real”. Na discussão crítica proposta no filme o protagonista idiota não assume responsabilidade direta por nenhuma de suas opiniões. Não é o caso de Bolsonaro, como os brasileiros assistem com um espanto que se aproxima cada vez mais do horror, até porque não dá para se entregar ao riso, já que nesta comédia grotesca não estamos no papel de platéia. É no palco que o nosso destino permanece ligado ao político colocado quase por acaso na Presidência da República — aí sim, temos o Mr. Chance “real”. O final deste enredo ninguém sabe, mas com certeza nenhum de nós se salva, muito menos os que abriram a possibilidade deste segundo episódio real e avassalador, colocando no poder um homem totalmente inepto para a comprovação de forma prática de tudo que na realidade ele não sabia como fazer.