Na luta pela descriminalização, postei uma selfie com um baseado apagado. Assim que postei, os amigos ficaram com medo que eu tomasse processos por apologia ou que eu tivesse a casa invadida pela polícia à procura do flagrante (infelizmente, só iam encontrar uma ponta) –afinal de contas, confessei um crime. Nada. Nem polícia, nem processo. O único esculacho que tomei foi em relação ao beque mal apertado, qualificado como pastel. “Faltou só o caldo de cana”, disseram.
A verdade é que a proibição nunca chegou aqui em casa. Por ser homem, branco, cisgênero e de classe média alta, a polícia sempre me tratou com o maior respeito. Quer dizer, já tomei uma bela tapa de um sargento (A tapa no feminino difere DO tapa pela intensidade), mas quem mora no Rio sabe que uma tapa é um carinho quando se trata da PMERJ. Fosse eu negro, pobre ou travesti, teria conhecido o famoso esculacho –um mimo da PM que muitas vezes acaba em morte. A guerra às drogas é uma guerra aos pobres –e a prova disso é que não conheço nenhum rico preso por tráfico.
Sendo assim: por que postar uma selfie pedindo a descriminalização se posso fumar um prensado tranquilo? Ou ainda: por que lutar por educação pública se posso pagar por educação privada? Ou: por que lutar por saúde pública se tenho plano de saúde? Por que lutar pelo aborto se não posso engravidar? Contra o racismo se eu sou branco? Contra a redução se eu sou maior de idade? Por que pedir o casamento gay se eu não quero casar gay?
Deleuze diz que o que difere a direita da esquerda é a forma que cada uma pensa o endereço postal. A direita diz: Gilles Deleuze. 12. Rue de Bizerte. Paris. França. Mundo. A esquerda diz: Mundo. França. Paris. Rue de Bizerte. 12. Gilles Deleuze. Ser de esquerda é perceber que os problemas do mundo vêm antes dos problemas do bairro que vêm antes dos meus problemas pessoais. Ali, Simba, tudo o que seus olhos podem ver, tudo isso é problema seu.
O Brasil tem 140 mil encarcerados por tráfico –negros e pobres, em sua imensa maioria. Sei que não vou ser preso por uma selfie, nem pelo flagrante e, na real, sei que não vou preso nem se eu for dono de um helicóptero com meia tonelada de pasta base de cocaína (ou talvez, nesse caso, precise ser deputado). Postar uma foto com baseado é problematizar: por que não vou preso? Cadê a polícia aqui na porta? Cadê meu esculacho?
Quando você sair do armário, vai ver que a maconha já está descriminalizada há muito tempo. O que continua criminalizada é a pobreza.
Gregorio Duvivier – Folha de São Paulo