Mundo de silêncio

Escutando só o que interessa escutar

Em 1992, fui a Laranjeiras entrevistar Antonio Nássara para meu livro “O Anjo Pornográfico”, sobre Nelson Rodrigues. Nássara era um formidável caricaturista e autor de letras eternas do Carnaval, como a do samba “Meu Consolo é Você”, de 1939, e da marchinha “Alá-lá-ô”, de 1941. Mas, em 1929, Nássara fora também paginador do jornal Crítica, de Mario Rodrigues, pai de Nelson, e era sobre isso que eu queria conversar. Na véspera, dona Iracema, sua mulher, me passara o endereço e a hora em que eu poderia visitá-lo. 

Ao chegar, ela me avisou: “Ele está muito surdo. Use isto para fazer as perguntas” —e me passou um bloco tamanho A2 e uma caneta Pilot. Aos 83 anos, Nássara estava com a memória inteira. A cada pergunta que eu rabiscava, dava-me respostas riquíssimas em detalhes. Só que aos gritos, como se estivesse falando para alguém tão surdo como ele. Ou quem sabe ele quisesse se escutar.

Nas últimas semanas, temos ouvido discursos, exortações e até hinos traduzidos em Libras, a língua brasileira de sinais. A princípio, pareceu-me apenas uma demagogia politicamente correta, o que, no caso de Jair Bolsonaro, seria uma contradição em termos —demagogia, sim; politicamente correta, não. Mas, de repente, somos informados de que o Brasil tem 10 milhões de surdos —e que bom que, até que enfim, eles estejam sendo lembrados. Fiquei me perguntando como seria viver num mundo de silêncio, a salvo da exasperante cacofonia das ruas, mas também privado de ouvir música ou a voz de alguém querido.

Todos conhecemos uma folclórica categoria de surdos, aqueles que usam um aparelhinho no ouvido e o desligam quando não querem escutar um chato ou inconveniente.

Talvez passível de lhes oferecer surpresas, é o que vem se passando com muitos eleitores de Bolsonaro —que, mesmo podendo ouvir perfeitamente, só estão escutando o que lhes interessa escutar. 

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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