Não se sabe se ela ainda era virgem, o que se sabe é que o cartunista Solda foi o único a ir para a cama com Dercy Gonçalves, em Curitiba. Os dois humoristas dividiram o mesmo leito há 35 anos. Dercy era uma moça de 66 anos e Luiz Antônio Solda era um menino de 21 aninhos.
Solda ainda nega o caso, mas há testemunhas. Foi em dezembro de 1973, quando Dercy Gonçalves fez uma temporada de um mês no Teatro de Bolso, o pequeno teatro da Praça Rui Barbosa que já não existe mais. Palco onde Ary Fontoura e Denise Stocklos começaram a brilhar, do Teatro de Bolso restou a memória dos tantos espetáculos que hoje fazem parte da história do teatro paranaense.
No início daquele ano, o Grupo de Teatro Margem, liderado pelo jornalista e escritor Manoel Carlos Karam, havia arrendado o teatro, com pouco mais de 100 lugares, para realizar ali suas montagens experimentais, fora do que se chamava na época de “teatrão”. Faziam parte do Teatro Margem, além de Manoel Carlos Karam, o iluminador Beto Bruel, os atores Alberto Centurião, Ione Prado, Regina Bastos, Denise Assumpção, Vera Prado, (depois Vera Solda), Roxane Leão, Luiz Antônio Karam, Beto Guiz e dois cartunistas iniciantes: Dante Mendonça e Luiz Antônio Solda.
Com pouco dinheiro no bolso e muitas idéias na cabeça, a trupe varria o chão, lavava banheiros, costurava figurinos, pintava cartazes, desenhava cenários e o dinheiro da bilheteria, quando raramente sobrava, ficava com os garçons dos bares Cometa e Triângulo, ali na recém-nascida Rua das Flores.
Assim, quando Dercy Gonçalves nos procurou para arrendar o Teatro de Bolso por 30 dias, aquele contrato firmado no fio do bigode caiu do céu. Nenhuma fortuna, parte do dinheiro foi reservado para contas futuras e para as despesas de uma peça que seria montada todas as sextas-feiras (meia-noite), enquanto Dercy Gonçalves estivesse em cartaz às 21 horas, de terça a domingo.
Essa montagem do Teatro Margem chama-se “Por falar nisso”, com direção de Alberto Centurião e, no elenco, a companhia completa. Inclusive o autor da peça: Luiz Antônio Solda. Da imaginação do cartunista, os personagens vestiam apenas pijamas e, no final do espetáculo, davam boa noite ao público, apagavam as luzes e saíam do teatro, iam à rua de pijamas. E o público que tratasse de ir embora também.
“Na cama com Dercy”, assim era o título do espetáculo e assim era o que se passava no palco: uma imensa cama de casal, um casal coadjuvante, e Ela no leito esplêndido. Quanto ao texto, variava de um dia ao outro, conforme os palavrões que vinham na cabeça da atriz que agora saiu de cena com 101 anos.
A temporada foi um sucesso de público, apesar do desastre que ocorreu na noite anterior à estréia. Com tudo ensaiado (e precisava?) e nos seus devidos lugares, principalmente a cama, um produtor “faz tudo” que se chamava Nestlé caiu na farra e foi terminar a noite com uma moça no cenário da Dercy Gonçalves. “Na cama com a moça”, Nestlé foi tão fogoso que conseguiu quebrar os quatro pés do cenário da Dercy.
Na manhã seguinte, quando a própria Dercy foi abrir a bilheteria (ela mesma cuidava dos ingressos), estava lá a cama estatelada, manca dos quatro pés.
Todos lembram, fora de cena, longe das câmaras, sem jornalistas, Dercy Gonçalves era uma gentil senhora. Em poucos minutos, Nestlé ouviu o repertório completo da enfurecida.
Chamado um marceneiro, o cenário foi restaurado no final da tarde, poucas horas antes da estréia. Não sem antes conferir o molejo e os novos pés daquele leito avariado. Para tanto, Dercy convocou um dos presentes para fazer o teste de peso.– Solda, deita comigo na cama!
Aquele dezembro de 1973 foi memorável. Como se não bastassem os embalos da cama, Dercy Gonçalves brindou a virada do ano entre nós, na casa de Roxane Leão. Eu não estava presente, sei que o cartunista Solda e o iluminador Beto Bruel passaram o reveillon tomando champagne com Dercy, no sofá.
Meninos eu vi, Solda na cama com Dercy. Teatro Margem 1973|2023 – 50 anos
Dante Mendonça|O Estado do Paraná