Não haverá mais Curitiba?

Mudei eu ou mudou Curitiba? E nem falo, senhores, da alma íntima dessa cidade que me viu crescer e abrigou, em 1956, a miúda família migrante do Norte Pioneiro, estreitando-nos num abraço acanhado, perdulariamente tímido, perdulariamente provinciano. Cárcere e lar, disse dela, um dia, com a precisão dos mestres, o escritor Dalton Trevisan. Já o poeta Jamil Snege nos ensinou como atravessar invisível seus becos e esquinas, pinheiros e precipícios. Fantasmas andamos a cidade feito a noiva do Abranches.

Domingo passado, fui à CIC, almoçar com uma antiga empregada, que me serviu alguns anos e hoje, velhinha, pede carinhos e atenções. A CIC, concebida originalmente para ser a cidade industrial de Curitiba, é a prova de que não mudei eu. Mudou Curitiba, a olhos visto. E para pior.

O que lá vi, entre o pasmo e o espanto? Invasões sobre invasões, casas convertidas em hórridos amontoados de tábuas de caixote. Ruelas com esgoto a céu aberto e o infanticídio que é este gosto perverso que faz do Brasil a referência de um mundo que perdeu – de vez – o juízo e os mais corriqueiros princípios do que um dia chamamos humanismo.

O humanismo é hoje uma utopia, gentil leitor? Certo que os métodos com que o buscamos um dia, a minha geração, esses, sim, eram utópicos… Mas a real prática humanista não pode ser. Pois crianças nuas e barrigudas, num cenário portinariano, foi o que vi, perplexo, no domingo, senhores.

Eis a Curitiba que foi empurrando os pobres para longe, para bem longe, bolha assassina que não permitisse em seu centro os deserdados da Terra. Tivéssemos chegado agora, e não em 1956, o abraço à miúda família migrante do Norte Pioneiro, seria bem outro. Hoje a cidade, de nariz alto, argh!, que prefere chamar o velho Bigorrilho de um nome new-brega, e que tem como chic, Champagnat, não é a minha cidade e possivelmente nem a de Trevisan ou Snege.

Champagnat? Pode? Daqui a pouco o Seminário vai ser Champs Elisés e Santa Felicidade, Roma Antíqua. Agora se mudarem o nome do Tingüi ou do Boa Vista para qualquer um desses apelidos escrotos criados nas pranchetas dos publicitários, chamo o dr. René Dotti para uma ação pública contra os cafonas e os mediocrões.

E se fosse só isso, de cafonas e mediocrões, urdida a cidade que nem sequer reconhecemos como nossa, menos mal. O penoso, o complexo e o quase insolúvel é que Curitiba incha e busca espaço. E com isso amontoam-se os bairros tradicionais, se espreme, aturdida, a classe média, e são expulsos para as violentas e sórdidas periferias os miseráveis.

Não, não mudei eu. Acho que errou Curitiba, e errou o século 21, de rumo e caminho.

27|7|2008

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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