Hélio Schwartsman – Folha de São Paulo
SÃO PAULO – Vá lá que um muçulmano nascido e criado num vilarejo próximo às cavernas de Tora Bora, no Afeganistão, tenha dificuldades para lidar com a ideia de liberdade de expressão. Supondo que ele jamais tenha saído de sua aldeia e que a educação que recebeu se limite a alguns anos frequentando madrassas, é natural que veja como um dever da comunidade silenciar expressões que não estejam de acordo com a ortodoxia de sua fé.
Constatar que brasileiros que vivem em cidades multirreligiosas e multiétnicas e que têm acesso à indústria cultural globalizada e à educação formal pensam o mesmo é algo que nos faz lamentar o estado de nossas escolas e maldizer alguns aspectos da natureza humana. Mas é quando um juiz e um delegado, que supostamente leram e entenderam a Constituição, se valem do poder do Estado para censurar manifestações artísticas que nos perguntamos se nossa democracia é mesmo viável.
Embora tenha sido profundamente lamentável, a decisão do Santander de cancelar a exposição “Queermuseu” não constituiu tecnicamente um caso de censura. O banco se acovardou diante dos protestos dos supostos liberais e resolveu suspender o patrocínio, o que é um direito seu.
Muito diferentes foram os casos do juiz de Jundiaí que proibiu a exibição de uma peça de teatro que retrata Cristo como transexual e do delegado de Campo Grande que mandou recolher um quadro cujo título é “Pedofilia”. Aqui, houve clara violação aos artigos 5º, IX, e 220 da Constituição, que impedem o poder público de exercer qualquer tipo de censura a manifestações artísticas.
O que me intriga é que, exceto para tora-borenses e demais grupos que ainda vivem no mundo das cavernas de Platão, esse tipo de discussão nem deveria se colocar. Quem não gosta do conteúdo de uma peça é totalmente livre para não assisti-la. Na democracia, o pecado é tentar impor crenças a quem delas não partilha.