Com seu narizinho arrebitado e suas atitudes que às vezes pareciam provocadoras, mas sempre verdadeiras e em busca do novo, desafiou o mundo político e artístico de seu tempo
Mais ou menos aos 9 anos, Nara pegou um violão de verdade pela primeira vez. Naquela época, meados dos anos 1950, havia conseguido umas poucas aulas matinais num apartamento de quarto e sala em Copacabana, seu território livre, com um ex-integrante do grupo “Os oito batutas”, de Pixinguinha. O horário se encaixava perfeitamente com suas idas à praia para encontrar-se com o parceiro Roberto Menescal, que a paquerava. Ou era ela que o seduzia?
Depois, passou a fazer aulas noturnas duas vezes por semana, de forma que não interferia muito em sua rotina. Dormia tarde e acordava por volta das 10 horas, com o mar e o sol entrando pela janelão à sua frente, invadindo a sala. Ela não se lembra de ter frequentado a igreja do Forte nem de ter feito a primeira comunhão. Esse pequeno detalhe escapou do roteiro de O canto livre de Nara Leão, série em cinco episódios de Renato Terra que a Globoplay acaba de lançar.
Importa que tudo que marcou a presença dessa artista revolucionária na arte e na vida está lá no seriado. Um rico e emocionante material audiovisual, de pesquisas e entrevistas, reconstitui a trajetória de uma mulher inquieta, independente, mãe de dois filhos e grande cantora que ela foi. Muito além de ter sido apenas a musa da Bossa Nova, título que rejeitava. Aliás, não queria ser rainha nem musa nem diva de coisa nenhuma.
Com seu narizinho arrebitado e suas atitudes que às vezes pareciam provocadoras, mas sempre verdadeiras e em busca do novo, desafiou o mundo político e artístico de seu tempo. Ela e Leila Diniz morreram muito jovens. Leila teve morte trágica, com apenas 27 anos, num desastre de avião. Juntas, sacudiram hábitos sociais e culturais da sociedade com seus ares atrevidos e suas posturas questionadoras e sem preconceitos. Nara morreu com 47, faria 80 anos dia 19 de janeiro próximo. O sortudo cineasta Ruy Guerra foi casado com ambas.
Sou dessa geração, vivi parte desses anos agitados e inebriantes em Copacabana, quase vizinho de Nara, que morava com os pais num apartamento do Edifício Champs Elysées, em frente ao Posto 4, na Avenida Atlântica. Devo ter passado por ela várias vezes depois de comprar um quibe no árabe da Galeria Menescal, que liga a Barata Ribeiro à Av. N. S. de Copacabana. Em seu apartamento nasceu a Bossa Nova, em 1957, nos intermináveis encontros musicais com Carlos Lyra, Menescal, Chico Feitosa, Ronaldo Bôscoli e tantos outros, pioneiros de uma história pra lá de conhecida.
Há muitas revelações e lindas imagens de arquivo na série de Renato Terra. Cheguei ao último episódio com a nítida sensação de que havia descoberto uma nova Nara. É impressionante como ela sai de cena muito maior do que parecia ser. Uma menina da Zona Sul bonitinha e alienadinha, uma cantora meiga e graciosa que causou impacto e ficou famosa ao vencer o Festival de Música Popular Brasileira da Record, em 1966, com a canção A Banda, de Chico Buarque.
A cantora cresce e adquire substância política e artística ao percorrer caminhos variados, ligar-se a grupos e movimentos musicais aparentemente opostos. Conduz a turma da Zona Sul para se juntar aos negros do samba de protesto, nos morros e nas favelas. Integram seu múltiplo repertório compositores como Chico Buarque, Roberto e Erasmo Carlos, Caetano Veloso, Nelson Cavaquinho, Zé Kéti, Cartola, Sidney Miller, João Donato e Paulinho da Viola. Uma artista de personalidade forte, à frente de seu tempo.
O segundo acontecimento de grande impacto da série dirigida por Renato é a abertura dos portões para uma viagem aos trepidantes anos 60. Uma viagem que põe o telespectador em contato com um país mergulhado num momento de grandes transformações em todos os setores, vivendo um intenso debate cultural, que vê o surgimento de uma nova literatura, um novo cinema, um novo teatro. Em busca de uma nova forma de viver.
Um vendaval pré-revolucionário em andamento acelerado, que aproxima artistas, estudantes, intelectuais, sindicalistas, setores da pequena burguesia enfeitiçados. No ar, a explosiva composição de uma pulsão sexual estimulada pela liberdade da pílula com a antevisão da guerrilha, que vem do Chê e de Cuba. Nos arredores, um mundo tumultuado, com os jovens à frente de passeatas gritando palavras de ordem revolucionárias. Quem viveu não esquecerá jamais essas cenas reviradas na memória pela série. Os mais jovens sentirão a alta temperatura desses anos que entraram para a História.
Sentada no palco com seu violão e os cobiçados joelhos à mostra, Nara estava à vontade nesse turbilhão. Num certo momento, deixou de estar por causa dos dois filhos pequenos, de seu segundo casamento, com o cineasta Cacá Diegues, enfrentando o dilema da mulher emancipada que tem desejos e ambições no trabalho, mas precisa cuidar dos filhos. São mães apaixonadas. Um tipo de drama como o do filme Filha perdida, magistralmente interpretado pela atriz Olivia Colman, no papel de uma celebrada professora de literatura trabalhando na pesquisa de seu doutorado. que entra em conflito com as duas filhas. Em exibição no Netflix.
A brutalidade do golpe de 1964 acabou com tudo, a democracia, a liberdade, os direitos e as ilusões acerca de um novo país que estava em gestação. Alguns movimentos ensaiaram resistir. outros foram destruídos aos poucos pela ação da censura, das prisões, fechamento e invasão de salas de espetáculos, a tortura e os assassinatos.
Fui ver Nara ainda nesse período de transição, em dezembro de 64, no show Opinião, dirigido por Augusto Boal, com produção do CPC da UNE, no shopping de Antiguidades de Copacabana. Sempre Copacabana. O pequeno teatro de arena lotado todos os dias, com o público espremido nas arquibancadas de madeira junto do palco, transformado num cenário de guerra e resistência à ditadura dos milicos.
No centro da arena, num ambiente escurecido e enfumaçado, Nara, Zé Kéti e João do Vale recitavam dramas da seca dos retirantes nordestinos e cantavam canções de protesto. Saíamos em grupos da faculdade para ver no teatro da Rua Siqueira Campos o canto livre da rebelde Nara Leão. Vestindo uma camiseta vermelha e calça jeans, ela erguia a voz e os punhos ao lado de Joao e Zé Kéti, incendiando a arena com o “Carcará pega, mata e come”. Para encerrar, a apoteose do hino “Podem me prender, podem me bater, podem até me deixar sem comer, que eu não mudo de opinião”. Eta, Nara arretada.