Há 20 anos, em 1995, meu livro “Estrela Solitária –Um Brasileiro Chamado Garrincha”, biografia do craque, foi recolhido das livrarias e impedido de circular por um juiz que acatou uma queixa de dois advogados representando as filhas do jogador. Eu não lhes pedira autorização para escrever sobre seu pai. De fato, não me ocorrera extrair um documento assinado autorizando-me a trabalhar.
E não me faltaram oportunidades. Desde 1993, eu fora oito vezes a Pau Grande, subdistrito de Magé (RJ), ao pé da Serra dos Órgãos, onde moravam sete das oito filhas de Garrincha com dona Nair, sua primeira mulher. Ali moravam também Iracy, sua namorada de infância, e a linda filha de ambos, Márcia. Visitei-as todas, várias vezes. Serviram-me cafezinho, filaram-me cigarros e nunca suspeitei que se opunham ao meu livro.
Graças ao estilista Luiz de Freitas, dono da Mr. Wonderful e nascido na região, fui convidado às casas de 23 outros habitantes de Pau Grande, velhos operários da América Fabril, onde Garrincha trabalhara em criança. Eram a memória viva da tecelagem no Brasil –pensei até em, um dia, escrever sobre eles. Já estavam há muito em Pau Grande quando Amaro, pai de Garrincha, mudara-se para lá, em 1925, e acompanharam a gravidez de dona Carolina, que, em 1933, resultaria no pequeno Mané.
Em Bangu, bairro operário do Rio, conheci Vanderlea (não a cantora), última mulher de Garrincha, com quem ele tivera sua filha Lívia, a quem ajudei a fazer os deveres escolares nas duas tardes que passei com elas. Umas pelas outras, todas essas mulheres responderam a centenas de minhas perguntas. Mas não lhes pedi autorização, e todas me processaram.
O STF julga hoje, em Brasília, se o Brasil já tem idade para escrever sua própria história, ou se continuará precisando pedir autorização.
Ruy Castro – Folha de S.Paulo