Nau dos afogados

Luiz Antonio do Nascimento

Bolsonaro virou marionete nas mãos do Centrão, pegou a chave do cofre do posto Ipiranga, agora transformado em borracharia mequetrefe de beira de estrada, e mergulhará o país numa crise econômica sem precedentes ao furar o teto de gastos para bancar o Auxílio Brasil em 2022 – uma decisão eleitoreira porque ele sabe que, com a ajuda de R$ 400 por mês, estará comprando votos, a única chance que tem para recuperar os pontos perdidos nas últimas pesquisas e tentar a reeleição

Vamos direto ao ponto: que estado democrático de direito é esse, tão alardeado por nossas autoridades, que admite uma enorme e cruel variedade de desigualdades sociais, da distribuição de renda à distinção da cor da pele, do prato de comida ao mercado de trabalho, do cuidado com a saúde ao acesso à cultura? É como se tivéssemos dois Brasis a bordo de um Titanic ‒ um, o Brasil elitista, pequeno, aboletado, com colete e toda a segurança, no convés do navio que submerge carregando no porão o outro Brasil, gigante, porém totalmente indefeso, entregue que está a toda a sorte de degradação; não há bote salva-vidas para essa enorme massa considerada desprezível pela turma do convés.

O Titanic tupiniquim está afundando, e a culpa não é só de Bolsonaro. É de todos nós. Primeiro, porque, mesmo sabendo de quem se tratava, o colocamos no comando. Segundo, porque, apesar de todas as barbaridades que cometeu, o mantivemos no cargo. E finalmente, porque, apesar da consciência sobre todos os seus crimes, não tivemos – e continuamos a não ter – força suficiente para tirá-lo de lá. Pior: deixamos aflorar, intoxicados pelo regime dele, uma onda de violência, ódio e intolerância numa plebe rude, insensível às advertências de que o navio já estava à deriva, cheio de ratos.

Quinta-feira, Estação do Anhangabaú, Centro de São Paulo. Uma criança chora, num carrinho de bebê, ao ver o pai, negro, sendo agredido por dois seguranças, brancos, do metrô. O homem teria tentado impedir uma ação de fiscalização contra o comércio ambulante. Apesar do choro da criança e dos apelos de populares, os seguranças aplicam nele um “mata-leão”, golpe condenável que pode levar à morte.

Sexta-feira, Curitiba, a cena chocante se repete, agora com uma mulher branca. Um grupo de policiais militares invade uma casa, prende um homem e o arrasta pela rua. A mulher que gravava a cena protesta contra a violência e pelo fato de os policiais não usarem máscara. É imobilizada por um deles, que comprime o rosto dela contra o chão, usando o joelho, e ainda a agride na cara com a boina do uniforme. 

Quarta-feira, Câmara Municipal de Porto Alegre. Um grupo de bolsonaristas invade o plenário da casa para protestar contra o passaporte vacinal, o comprovante de vacinação tornado obrigatório para acesso a eventos que possam provocar aglomerações e representar risco de contágio. Vereadores foram ofendidos e agredidos, e um dos negacionistas, uma mulher, ostentava acintosamente um cartaz com a suástica nazista. O grupo foi expulso da Câmara sob vaias e o coro “Fascistas, não passarão”.

Terça-feira, Tribunal de Justiça de São Paulo. O Ministério Público denuncia uma mulher por quatro crimes que ela teria cometido durante uma ação policial em Parelheiros: infração de medida sanitária preventiva, desacato, resistência e lesão corporal contra um dos policiais envolvidos. Sabem quem é essa mulher? A comerciante negra, de 51 anos, que foi agredida e pisoteada por um PM em maio do ano passado.

E durante toda a semana, a primeira mulher negra e do Norte do país a ser eleita para presidir a UNE foi vítima de ameaças e ataques racistas e machistas. Bruna Brelaz foi chamada de cadela, safada, fascista e traidora, entre outras ofensas, por ter dialogado com representantes da direita pela construção de uma frente ampla que viabilize o impeachment de Jair Bolsonaro. A presidente da UNE reagiu: “Não tem misoginia, racismo e discurso de ódio que nos silencie”. E recebeu o apoio de vários políticos da esquerda.

Em jogo, a corrida presidencial, que está levando o presidente da República ao desespero e o Brasil a naufragar. Bolsonaro virou marionete nas mãos do Centrão, pegou a chave do cofre do posto Ipiranga, agora transformado em borracharia mequetrefe de beira de estrada, e mergulhará o país numa crise econômica sem precedentes ao furar o teto de gastos para bancar o Auxílio Brasil em 2022 – uma decisão eleitoreira porque ele sabe que, com a ajuda de R$ 400 por mês, estará comprando votos, a única chance que tem para recuperar os pontos perdidos nas últimas pesquisas e tentar a reeleição. 

E não é só isso. O homem insiste nas fake news. Agora, por exemplo, anda dizendo que a vacina contra a Covid-19 provoca Aids. Mais uma do presidente aloprado e irresponsável que, segundo seu filho mais velho, o 01 das “rachadinhas”, provavelmente teria reagido com uma gargalhada quando soube que a CPI das Pandemia pedira o indiciamento dele, dos filhos, de ministros e ex-ministros, políticos, médicos e funcionários públicos, pelas ações e omissões no combate à pandemia que resultaram na morte de mais de 600 mil brasileiros.

Que o trabalho da CPI não seja desmoralizado nem morra nas mãos do procurador-amigo-geral da República. E que todos os responsáveis sejam punidos exemplarmente. Do contrário, da nossa pobre e frágil democracia e do falado estado de direito, restarão apenas os ossos, como as boias inúteis da nau dos afogados.

Para completar: sabem os acervos preciosos que mostram como foram planejadas as obras de Lúcio Costa e Paulo Mendes da Rocha? Pois é. Estão em Portugal. O governo brasileiro não se interessou por elas. Talvez nem saiba quem foram eles.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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