J. Ozon, o editor que se atreveu a publicar Nelson Rodrigues
De agosto de 1959 a fevereiro de 1960, os leitores da Última Hora viveram atracados a uma história que saía em capítulos diários. Ao fim de 112 dias, alguns fizeram a contabilidade: um assassinato, um estupro, dois suicídios, três defloramentos, inúmeros adultérios, aborto, masturbação, lesbianismo, incesto, uma automutilação genital (com navalha) e uma cena belíssima de sexo numa estrada à noite no meio de chuva e lama. Era o folhetim “Asfalto Selvagem”, a saga de Engraçadinha, de Nelson Rodrigues.
Como isso podia sair num jornal lido por senhoras e crianças? Podia —se este jornal fosse a Última Hora de Samuel Wainer. Nenhum outro o publicaria. Na época, ninguém mais maldito do que Nelson. Suas peças criavam alvoroço: censores entravam em ação, espectadores saíam esbravejando, outros queriam agredir o elenco. Nelson no cinema ou na TV? Nem pensar. E, por todos os anos 50, ele foi um vira-lata da literatura —ninguém se atrevia a publicá-lo.
Mas, em 1960, um editor, J. Ozon, se atreveu. Sem avisar, ele inundou as livrarias com “Asfalto Selvagem” em dois volumes; “Cem Contos Escolhidos” (tirados da coluna diária “A Vida Como Ela É…”), também em dois volumes; e a nova peça de Nelson, “Beijo no Asfalto”, todos com capas sugestivas ou escandalosas. Ozon era seu velho amigo. E, como tinha distribuição nacional, os livros pegaram de surpresa os padres e a polícia dos grotões. Quando eles acordaram, era tarde.
Um livro recém-lançado, “J. Ozon: O Editor e o Caricaturista”, de Luciano Magno, traz de volta a carreira desse editor, que teve também Jorge Amado, David Nasser e Orestes Barbosa como seus autores, e foi um caricaturista original, bissexto e quase secreto.
Hoje sei que devo a Ozon parte da minha formação. Aos 13 anos, em 1961, pedi a meu pai que me comprasse aqueles livros de Nelson Rodrigues. Ele comprou. E me orgulho de tê-los até hoje.