Se empresa fosse família, seria aquela na qual era melhor não ter nascido
Faz algum tempo que a palavra família circula no mundo corporativo como se fosse a coisa mais natural do mundo. A analogia traz algumas contradições interessantes. É difícil imaginar uma família na qual todo mundo trabalha suado pelo luxo extremo de poucos. Geralmente acontece o contrário: os pais se esfalfam para dar conta da renca de filhos e idosos sob seus cuidados. Isso significa que os mais frágeis, em condições de maior dependência, são os mais assistidos. Nada mais inapropriado para pensar as empresas e sua lógica cumulativa de distribuição ultra desigual.
Laços familiares seriam baseados em amor e abnegação, mas, sejamos honestos, quantos colegas te doariam um rim? A competição e a cooperação são próprias das relações entre parentes, principalmente irmãos, mas as rasteiras que ocorrem nas empresas só são comparáveis ao que se passa em famílias notáveis pela disfuncionalidade. Se empresa fosse família, seria aquela na qual era melhor não ter nascido, como em “Succession“, “The Crown” e outras encenações da família-empresa. Aquela na qual você vende a alma para permanecer no jogo e não consegue mais sair por não ter alma para se sustentar fora dele.
Chefes abusivos, injustos ou sacanas e empresas com objetivo de extorquir a força de trabalho em troca de um contrato mal remunerado e sem garantias são a regra. Mas essa não é a única fonte de sofrimento. Um dos maiores ataques à saúde mental é o não reconhecimento da experiência, o desmentido que nos faz duvidar de nós mesmos. Nesse caso, muitas vezes o sujeito só consegue responder com o sintoma. A negação da exploração —embutida na ideologia da empresa-família— é tão preocupante quanto às más condições de trabalho.
Adoecer pode ser uma saída honrosa para uma situação indigna de trabalho. Inclusive o glamourizado: como posso estar sofrendo quando trabalho numa empresa que tem mesa de pingue-pongue, sala com pufes, horários flexíveis e uma decoração de parque de diversões? Não é o que todo mundo queria?
Para muitos resta a saída pelo diagnóstico de depressão e ansiedade. Ele surge como misteriosas condições trazidas pela falha dos neurotransmissores. Se está tudo bem e eu estou mal, devo estar fazendo algo errado. Faltou yoga, sal do Himalaia, meditação, psicanálise, triatlon! Poucos se perguntam se faz algum sentido trabalhar num esquema no qual se é totalmente descartável ao mesmo tempo em que se vende a ideia de alegria, trabalho coletivo e meritocracia.
Quando as pessoas se queixam de que a geração Z é menos propensa ao mercado de trabalho atual e à aquisição de patrimônio, esquecem de se perguntar a que esse comportamento responde. São jovens que viram os mais velhos se dedicarem ao trabalho de forma insana para chegarem na velhice com poucas perspectivas de uma aposentadoria decente. O tempo de aproveitar a vida, esse que se projeta para depois da árdua jornada em busca de estabilidade, se mostra pouco promissor para essa geração.
Outra questão é que o acúmulo de bens, tão valorizado entre nós, não se organiza mais no eixo carros-imóveis-previdência. Os jovens já não se imaginam lutando anos pela aquisição cada vez mais improvável desse patrimônio. Sendo geração que entendeu que o fim do mundo está sempre à espreita, só lhes resta viver o agora.
Por fim, se empresa fosse família, funcionários herdariam algo no final. Mas no mundo da uberização, nem indenização se pode esperar.
Ambientes saudáveis se fazem com justiça, lealdade e transparência. O resto vale tanto quanto o copo de plástico no churrasco da firma, na qual a carne servida é sempre a do funcionário.