Siss é uma garota extrovertida, alegre e muito popular na escola. Sua infância ocorre sob o manto dos cuidados parentais e tamanha segurança lhe confere a capacidade de ser a líder entre os amigos.
Até que Unn, uma menina de personalidade oposta, chega ao vilarejo norueguês, mais precisamente à escola de Siss. Unn é melancólica, quieta e misteriosa. Órfã com apenas 11 anos de idade, foi acolhida por uma tia também solitária.
Siss, acostumada a atrair qualquer criança para suas aventuras e conversas, automaticamente se intriga com o isolamento quase intencional e de certo modo provocador da tímida novata, que sorri com olhos azuis “que invadem e se deixam invadir”. Começa então a sua obstinação em se tornar íntima daquela garota de olhar hipnotizante, tão arredia e inquietante.
Nesse delicadíssimo livro, o autor Tarjei Vesaas, nascido no sul da Noruega e morto em 1970, narra muito mais do que o simples desabrochar de duas garotas para a pré-adolescência. São corpos atravessados por curiosidades, desejos, despedidas e silêncios na mesma medida excessivos e cândidos.
Magnetizadas pelo universo uma da outra, e sem saber ainda se movidas pelo maravilhamento de uma amizade intensa ou por uma primeira descoberta erótica, Unn e Siss combinam se de encontrar uma tarde no quarto da primeira.
A partir do que podem ver, compartilhar e sentir naquele encontro, e sobretudo a partir do que ainda não podem contemplar, expressar e interpretar, um laço eterno se dá entre elas. Cúmplices de um início espantoso, de olhares que transmitiam “uma espécie de nostalgia afetuosa”, ambas agora precisavam de algum distanciamento para que, talvez, pudessem um dia colocar em palavras suas angústias e arrebatamentos. A força literária desta obra é justamente a beleza gritante da incapacidade verbal dos inexperientes.
Após o encontro, Siss percebe que nunca mais poderá voltar para a casa dos pais da forma como saiu –”não, não adiantava, ela não estava lá, estava espremida entre aquilo que existe nas margens da estrada”. Unn, na manhã seguinte, decide passar o dia escondida: “Não posso encontrá-la, já me basta pensar nela”. Caminhando por entre árvores encobertas pela geada e rios congelados reluzentes como espelhos, chega a uma cascata petrificada pelo fim do outono que, diziam, havia se tornado um castelo.
Tão marcante quanto a presença de Unn, tão forte quanto a batalha de Siss contra a solidão e o esquecimento, tão desafiador quanto cada minuto à espera de respostas (lembra de quando nos apaixonávamos na adolescência, tão virgens de cinismo e marcas?), este “O Castelo de Gelo” consegue o feito mágico de nos contar tanto —e ainda sobra muito a ser digerido semanas após a leitura– e, ao mesmo tempo, nos deixar desesperados por informações ou compreensões mais nítidas e desambiguadas.
É bonito pensar que, ao lado da antes solar Siss, agora encantada por seu espelho invertido que mostra frio e escuridão, nós, os leitores desse grande livro, também podemos nos perder pelos labirintos das lembranças dos nossos primeiros amores e de tantas despedidas e não ditos ao longo da vida. Uma metáfora perfeita sobre como explosões afetivas ocorrem em nossas mentes: tentativas infinitas de apreendê-las sem sucesso.