Quando Nelson Piquet foi desclassificado do GP do Brasil semanas depois de vencer em Jacarepaguá, no mesmo ano, porque seu carro carregava um tanque de água que era esvaziado durante a corrida, depois da pesagem oficial, achamos uma injustiça — qual o problema de dar uma dribladinha marota no regulamento?
Quando Nelson Piquet bateu o carro em Ímola em 1987 e ficou sem enxergar direito, perdeu a noção de profundidade, e escondeu isso dos médicos e da equipe, colocando todos que corriam com ele em risco, achamos aquilo um exemplo de dissimulação dos mais aceitáveis, afinal, acabou ganhando o campeonato.
Quando Nelson Piquet chamou Nigel Mansell de “idiota veloz” e disse que ele não tinha só a mulher mais feia do mundo, mas também a segunda, porque teria um busto dela no jardim, achamos aquilo muito engraçado e gargalhamos.
Quando Nelson Piquet insinuou que Ayrton Senna era homossexual dizendo que a imprensa deveria perguntar a ele por que o rival não gostava de mulher, achamos aquilo picante e midiático e alimentamos a história por anos.
Quando Nelson Piquet mandou colocarem para-lamas sobre as rodas do carro de seu filho para descaracterizá-lo e permitir que ele fizesse testes num ano em que treinos privados eram proibidos na Fórmula 3 brasileira, achamos que os outros estavam chorando à toa e elogiamos sua esperteza e sagacidade.
Quando Nelson Piquet deu uma entrevista ao lado de Mansell depois da gravação de um comercial para a Ford numa pista gaúcha e disse que se achava melhor que Senna porque estava vivo e o outro, morto, achamos aquilo um pouco exagerado, piada de mau gosto, talvez, mas, puxa, é o Piquet, ele sempre foi assim.
Quando Nelson Piquet resolveu revelar um ano depois do acontecido que seu filho bateu o carro de propósito em Cingapura para não ser mandado embora da Renault e a Renault o mandou embora mesmo assim, não perguntamos a ele por que não botou a boca no trombone na hora, não questionamos se exporia o escândalo se o filho tivesse ficado na equipe, e tratamos pai e filho como vítimas de personagens insidiosos do paddock.
Quando Nelson Piquet foi convidado para a primeira transmissão da volta da F-1 à Band e referiu-se à emissora que deteve os direitos de TV nos 40 anos anteriores como “globolixo”, no melhor estilo bolsonarista de se expressar, as pessoas no estúdio riram e os seguidores do presidente tiveram orgasmos nas redes sociais. Ah, as molecagens do Piquet!
Depois Piquet abraçou Bolsonaro e o velho da Havan. Dirigiu o Rolls Royce presidencial no infame 7 de setembro do ano passado, dia em que o indigitado percorreu o país declarando sem nenhum constrangimento suas intenções golpistas. Deu entrevistas aos mais desprezíveis entrevistadores possíveis, entre eles um dos filhos do presidente — a ele, prometeu deixar o país se a esquerda voltasse ao poder; que seja cobrado.
Então sua filha começou a namorar Max Verstappen, que no ano passado se transformou no maior rival de Lewis Hamilton, o único piloto negro da história da F-1, chamado de “patrão” por fãs brasileiros. Então Verstappen ganhou o título do ano passado e o filho de Piquet, “cunhado” de Verstappen, colocou no ar um vídeo no Instagram vestindo uma camiseta na qual se lia a elegante frase “patrão é meuzovo” para comemorar a conquista de Max e debochar de Hamilton. Então Piquet deu mais uma entrevista no fim do ano passado e se referiu a Hamilton, várias vezes, como “o neguinho”, e chamou Keke Rosberg, campeão de 1982, de “bosta”, e falou que o filho deste só ganhou o campeonato de 2016 porque “o neguinho devia estar dando muito o cu” naquele ano.
Nossos ídolos ainda são os mesmos, cantou Elis Regina divinamente na letra de Belchior. O verso permite uma leitura sutilmente diferente se por “mesmos” entendermos que não nos referimos a uma lista de pessoas que nossos pais também idolatraram, e essa lista atravessa o tempo, e continuamos a idolatrar essas mesmas pessoas.
Alguns sempre foram assim, grosseiros, espertalhões, velhacos, homofóbicos, racistas, e nesse sentido sempre foram os mesmos, mesmo; nunca mudaram. E ainda assim insistimos em idolatrá-los, em perdoar seus deslizes, sua canalhice, sua abjeção, suas ofensas, seu comportamento, seus atos vis. Resistimos em admitir que idolatramos pessoas que jamais deveriam merecer nossa admiração, nem a de ninguém.
Piquet sempre foi isso aí. Errados somos nós, que para ele batemos palmas por tanto tempo sabendo quem ele é. E a cada aplauso reforçamos tudo aquilo que representa e defende, e por isso somos cúmplices históricos de sua ignomínia.
Que aceitemos nossos erros e saibamos mudar, algo que, pelo visto, Piquet não soube. Ao contrário, só piorou.