José Pires – Brasil Limpeza
O falecido Ivan Lessa, grande jornalista brasileiro, um dos criadores do semanário O Pasquim, é autor de uma frase que diz que “de dez em dez anos o brasileiro esquece os últimos dez anos”. Isso já era muito ruim na época da criação da frase, no final dos anos 70, quando o país já queimava neurônios. Um lugar sem memória resulta sempre em precariedade política e cultural, que no geral abre espaço para o pior, especialmente para as trapaças da política. Não foi à toa que chegamos a essa situação trágica atual, da qual não se vê perspectiva de saída.
A perda de memória do brasileiro já era de efeito dramático quando ocorria de dez em dez anos. Então imagine o estrago de agora, com este período bastante diminuído. Com a fragmentação terrível da comunicação, sem a relativa sistematização que era feita antes pela imprensa e com a intelectualidade caindo na safadeza à direita e à esquerda, a memória coletiva vem pifando em questão de meses. Estou dizendo isso em razão da polêmica criada pelo bate-boca entre os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, nesta quinta-feira, no plenário do STF. Os dois trocaram acusações gravíssimas, que na minha opinião mereceria para cada qual um processo.
Aponto a questão da memória exclusivamente no que Gilmar Mendes falou sobre Barroso. Todo mundo já aceitou as acusações de Barroso. Na sua fala, Gilmar Mendes insinua que Barroso absolveu o ex-ministro José Dirceu por motivações que não seriam exatamente de motivação legal. De imediato, o ministro alegou que sua decisão obedecia ao indulto presidencial assinado por Dilma Rousseff. Mas fugia do assunto de fato. E como vivemos em um país em que a memória é descuidada mesmo em assunto importante como o do mensalão, todos caíram na embromação de Barroso. Gilmar Mendes tentou alertar de que falava de outra coisa, mas como ele é a bola da vez em satanização política, todos se concentraram na fala agressiva de Barroso, muito objetiva por sinal, mas ainda opinativa, mesmo que haja razões para desconfiar muito de Gilmar Mendes.
Não tem indulto algum no assunto trazido novamente ao debate por Gilmar Mendes, desta vez em forma de acusação. O indulto presidencial usado por Barroso como justificativa é de outubro do ano passado. Gilmar Mendes falava é da votação dos embargos infringentes, que apareceram de surpresa já na finalização do julgamento do mensalão, em setembro de 2013. Os brasileiros nem sabiam o que era esse negócio, que na verdade, até pela forma que surgiram, lembravam mais uma negociata. Luís Roberto Barroso foi um apoiador não só do acatamento dos embargos infringentes pedidos pela defesa dos mensaleiros, como até se entusiasmou no final na aprovação desses embargos, que livraram José Dirceu e mais sete de uma condenação importante, que se fosse aplicada provavelmente teria evitado a roubalheira do petrolão, que viria depois. De dez anos e dez meses, em regime fechado, a pena de Dirceu caiu para sete anos e onze meses de prisão, em regime semiaberto. Cabe lembrar que Barroso não estava no STF quando as penas do mensalão foram definidas. Só entrou no julgamento dos embargos, depois de nomeado por Dilma Rousseff em junho de 2013.
Com os embargos, Dirceu livrou-se do crime de formação de quadrilha, que fez do mensalão na visão do julgamento do STF um esquema curioso: ocorriam por casualidade os crimes da ampla rede que operou por mais de dois anos e que na peça acusatória do procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, aparecia ligada a três núcleos: político-partidário, o publicitário e o financeiro. A tese de Barroso foi a de que houve coautoria e não quadrilha no mensalão. Durante o julgamento que livrou Dirceu, o ministro Barroso teve também um bate-boca com outro ministro de personalidade forte, Joaquim Barbosa, que criticou o voto pela absolvição dizendo que o voto foi um “discurso político”.
Mais que isso, Barbosa disse também que o julgamento dos recursos teve influência de “maioria formada sob medida para lançar por terra o trabalho primoroso levado a cabo por esta Corte no segundo semestre de 2012”. Ele falava da condenação dos criminosos, que sem os embargos teriam recebido penas maiores. Pela desgraça que vivemos atualmente, já se sabe que o Brasil teria tido muito menos prejuízos com esse pessoal na cadeia.