Há mais ou menos 15 anos, estava, como minha esposa, de férias num hotel do interior do norte do Brasil. Num dia, acordei passando muito mal, febre altíssima, dor no corpo e dificuldade para andar. Raquel conseguiu com o atendente do hotel a informação e um carro para nos levar ao Postinho de Saúde na sede do município, 7 km distantes do hotel. Chegando no Postinho, a atendente de enfermagem me fez algumas perguntas, tirou a febre, colocou uma fita vermelha no meu pulso e disse: “O senhor tem prioridade máxima. Assim que o doutor terminar o atendimento que está realizando será chamado”. Assustado, sentei na espera junto com outros pacientes, todos pobres, peles enrugadas pelo calor inclemente, gente que trabalha de sol a sol, enfim, a força do sertanejo de que nos falou o grande Euclides da Cunha.
O Postinho era numa casa e a grande sala em que estávamos não tinha divisória. Na frente, um biombo separava o médico e o paciente atendido dos demais. No fundo da sala, sem qualquer biombo, duas camas médicas arrumadas. Tudo simples, pobre, mas muito limpo e digno.
Saindo o paciente que estava atendendo, o médico chamou: Paulo Roberto. Fui até ele e narrei o que estava acontecendo.
Nas primeiras palavras do médico, senti que ele era um humanista que amava o que fazia. Disse que eu havia perdido, pelo sol muito forte e por ser do Sul, muito líquido e provavelmente estava desidratado. Iria me colocar no soro por duas horas e mandar colher material para exame, além de me dar um antitérmico na veia. Afinal, disse baixinho, havia boato de que um surto de malária assolava a região. A atendente de enfermagem colheu o material e me pôs numa cama do fundo da sala e aplicou o soro e o antitérmico.
Enquanto isso, percebi que Raquel entabulava conversa com uma senhora que estava na espera. Passei a prestar atenção. A senhora disse que estava com a filha grávida para o doutor examinar. A menina, segundo a senhora, tinha 13 anos. O pai, 16, pescador e “muito trabalhador”. Esperavam um menino. Disse que, além da grávida, tinha outros 4 filhos e que o marido tinha ido pra Brasília “tentar a sorte”, e nunca mais deu notícias. Comentou que ganhava a vida plantando mandioca numa terrinha de que tinha escritura. Tudo legalizado. Quando sobrava um dinheirinho comprava um peixinho e comiam com pirão.
Duas horas depois, já bem melhor, o doutor me deu alta e disse: “preventivamente, compre este remédio na farmácia da cidade e tome um comprido a cada 6 horas”. Comentou comigo, acho que simpatizou, que havia clinicado a vida toda em Recife e aposentado e com os filhos criados resolveu viajar com a esposa pelo Brasil. Se apaixonaram pelo lugar, pela praia, compraram uma casa e ali viviam felizes. Disse que, com o passar do tempo, estava se sentindo um inútil por ficar o dia inteiro na beira da praia com tanta gente precisando de médico que não existia na cidade. Foi quando o prefeito estava para inaugurar o Postinho e abriu concurso para contratar o primeiro médico do município. Se inscreveu, e como foi o único candidato, foi aprovado e nomeado e desde então entrava às 8 da manhã no Postinho e não tinha hora para sair.
Disse que meus exames iriam para o Laboratório na Capital e que voltasse no outro dia, depois das 14, quando os mesmos retornariam. Na ida pro hotel, o motorista parou na farmácia e minha esposa comprou o medicamento. Lembro que ela comentou que tinha custado 5 ou 6 reais. Cheguei no hotel e peguei o comprido para tomar, achei pitoresco o nome do remédio: cloroquina.
No outro dia, já bem melhor e sem qualquer sintoma, retornei ao Postinho. O doutor falou que meus exames tinham dado negativo prá malária. Disse que tinha sido desidratação mesmo. Mandou tomar uns 3 litros de água de coco por dia. Quando eu ia saindo, disse: “Nunca mais tome a cloroquina, ela tem efeitos colaterais graves!” Como estava com a caixa dos comprimidos da tal cloroquina no bolso, dei para ele e disse que outro paciente poderia necessitar. Ele agradeceu e eu fui para o hotel.
Desde que o Bozo e os bolsominions começaram com o assunto da tal cloroquina, a história não me sai da cabeça.Fico me perguntando: o doutor ainda clinica? Está na linha de frente da pandemia? Muita gente já foi contaminada na cidadezinha? Quantos morreram? O bebê nasceu? Sobreviveu à mortalidade infantil? Está na escola? Ou é pescador que nem o pai ou vendia picolé na beira da praia antes da pandemia? A mãe teve outros filhos? O pai continua lá pescando ou também foi para Brasília tentar a sorte e nunca mais deu notícias? A avó é viva? Conseguiram levantar na Caixa o auxílio emergencial?