Os que de boa ou má fé se recusavam a acreditar que o regime perseguiu, censurou, torturou, assassinou e fez desaparecer corpos de militantes que se engajaram na resistência serão levados a rever seu negacionismo. A tensão e o terror daqueles dias explodem na tela. O longa escancara a crueldade do arbítrio e revolve nossa memória
Acesas as luzes, cessadas as palmas, a sala continua tomada pelo enorme vulto do político e revolucionário Carlos Marighella que emerge do filme de Wagner Moura. Na pele negra e no olhar duro de Seu Jorge, o ator que o representa, o vulto é assustadoramente maior do que o que se imaginava. O espectador é impactado também pela exibição da extrema violência usada pela máquina de repressão do Estado ditatorial contra opositores e as organizações de esquerda. Barbárie que contou com a garantia do silêncio e da impunidade para ser mantida oculta.
Sinto que o guerrilheiro baiano voltou com tudo, que o longa desencadeia uma espécie de catarse coletiva ao revelar a intensidade brutal de um combate travado nas trevas de uma ditadura, exposto pela primeira vez de forma aberta e escancarada. Por mais que os livros o tenham feito, o cinema e a televisão nunca o fizeram. Por isso a demora em sua liberação. O público vai entender que Marighella não é um filme sobre o passado. Suas ações reverberam intensamente sobre o país em que estamos vivendo.
Os que de boa ou má fé se recusavam a acreditar que o regime perseguiu, censurou, torturou, assassinou e fez desaparecer corpos de militantes que se engajaram na resistência serão levados a rever seu negacionismo. A tensão e o terror daqueles dias explodem na tela. O longa escancara a crueldade do arbítrio e revolve nossa memória.
Tentei de alguma forma processar as imagens que me empurravam de volta aos porões dos quartéis militares. Passei dois dias ruminando a atmosfera de radicalização daqueles tempos, dos aparelhos e das reuniões aos pontos de rua, dos fusquinhas e Rural Willis nas ruas ao terror vivido na sala. Aquela onde o filho chora e a mãe não vê.
Procurei algum escape nos livros. Ao invés de ler o poema Alumbramento, de Bandeira, folheei o meu Tirando o capuz e o livraço do Mário Magalhães, Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo, que serviu de base para o roteiro. Estreando na direção de forma auspiciosa, Wagner Moura fez uma adaptação trepidante, combinando realidade e ficção, exigindo dos atores empenho total na combinação de situações de medo, humor, terror, amizade, ternura. Batizou personagens com o nome real dos atores.
Dos livros que reabri, o melhor sem dúvida é Combate nas trevas, do historiador e militante comunista Jacob Gorender, que mergulha na esquerda brasileira, das ilusões perdidas à luta armada. Também baiano, formado politicamente junto com Marighella ‒ de quem depois divergiu ‒ na grande escola do Partidão, Gorender faz um retrato sincero e pessoal do amigo, que se sentava a seu lado nas reuniões do Comitê Central: ]’Um mulato alto e musculoso, forte, leitor voraz, debochado e destemido, um dos homens mais valentes que conheci. Não que não temesse a morte, mas a desafiava”.
Na tarde de domingo, vendo que a santa perplexidade não me dava tréguas, levei Seu Jorge ao Centro Cultural Banco do Brasil para ver a exposição Nise – a revolução pelo afeto. Nise da Silveira é uma psiquiatra subversiva, que mexe com o inconsciente. Pensei que aquele encontro nos faria bem. Lá constatei que eles se conheciam. Nas décadas de 1960/70, em que se passa o filme, a alagoana tinha apenas seis anos a mais do que o poeta e guerrilheiro baiano. Ambos transitando entre os 50 e 60 anos.
A conversa nos fez bem. Nise é de uma incrível simplicidade e candura, gosta de loucos, gatos e plantas. De repente, vi que eles conversavam. Ele diz: “Sua exposição é um assombro, uma potência de afetos e inteligência. A senhora é rebelde, soube que flertou com o PCB e esteve presa em 1936, no presídio Frei Caneca, delatada por uma enfermeira pela posse de livros marxistas. No cárcere, tornou-se amiga do escritor Graciliano Ramos. E inspirou o filme O coração da loucura, de Roberto Berliner”.
Ela se entusiasma. Mostra para Seu Jorge algumas de suas frases expostas. “Para navegar contra a corrente, são necessárias condições raras: espírito de aventura, coragem, perseverança e paixão”. Em outra moldura, adverte: ‘Não faz parte do meu vocabulário a palavra recuar. Deve-se sempre ir em frente, olhando para o futuro”. O guerrilheiro envaidecido piscou para ela. Em seguida, a psiquiatra puxa-o pela mão para lhe mostrar partes de sua entrevista no documentário Imagens do inconsciente, de Leon Hirsman.
No vídeo, com uma expressão frágil de mulher aguerrida, entrelaçando os dedos das mãos, ela diz para a câmera de Leon: “O que me fascinava era o que acontecia dentro da cuca do esquizofrênico, debaixo daquele aspecto miserável de demenciado”.
Marighella ficou impressionado com a vitalidade do trabalho precursor da psiquiatra junguiana, que batia com sua postura. Depois de anos esquecidos, dois grandes vultos da História brasileira foram se encontrar num domingo chuvoso de novembro, no CCBB carioca. Deixamos Nise e tomamos o metrô para sair da cidade. Saltamos na Estação Botafogo, ao lado de um cinema que exibia Marighella. Nas filas, jovens se divertem e falam alto, sem saber que daqui a pouco, terminada a sessão, poderiam reagir como reagiu minha neta, que me contou num zap: “Coração a mil, muito choro”.
As imagens do filme de Wagner Moura tornam a aparecer. O guerrilheiro ‘Jorge’ (Jorge Paz) é preso numa blitz da repressão. Ele interpreta o operário potiguar Virgílio Gomes da Silva, o Jonas, comandante da ação de sequestro do embaixador Charles Elbrik. Quem esperava, como eu, ver a seguir uma cena clássica de tortura, verá algo aterrador, cruel e insuportável, criado pelo diretor. A nudez do prisioneiro exposta num prolongado ato de suplício e execução. Ouve-se os gritos de Jorge, “Vocês estão matando um brasileiro, estão matando um patriota”.
A violência da esquerda também está em cena. De 1965 até às vésperas de sua morte, no final de 69, Marighella conjugou o dinamismo de revolucionário a uma produção literária exuberante. Através de seus escritos, pode se acompanhar o pensamento que deu origem à criação da Ação Libertadora Nacional, sob seu comando e de Joaquim Câmara Ferreira (Branco no filme, em excelente atuação de Luiz Carlos Vasconcelos.)
Marighella, o “Preto”, foi o líder revolucionário dos anos 60 que mais explicitamente pregou o terrorismo de esquerda. No jornal O Guerrilheiro, escreveu: “O primeiríssimo princípio é o da ação. É a ação que faz a organização e a desenvolve. A ação cria tudo a partir do nada. Ação significa violência, luta armada, guerrilha”.
Embalado por uma aura felliniana, o filme termina com uma emocionante cena em que os atores, quase que num transe coletivo, fazem uma roda para cantar o Hino Nacional, retomando a canção do gueto das milícias bolsonaristas. Nos cinemas, com vocês, a imaginação e a realidade do líder comunista Carlos Marighella, ex-deputado, poeta, negro, pai de Carlinhos e filho de Oxóssi.