Foi profundamente chocante assistir ao vídeo de uma jovem caída na rua e carregada pelo homem que a violentou como se fosse algum objeto.
Para quem não soube do ocorrido, uma mulher de 22 anos se embriagou até ficar inconsciente durante um show do cantor Thiaguinho. Estava na companhia de um amigo, que chamou um motorista de aplicativo, que a levou sozinha por volta das 3h até sua casa.
O amigo teria compartilhado o trajeto do carro com o irmão da vítima. O motorista chegou ao endereço e tocou o interfone. O irmão tinha dormido e não ouviu o chamado —a família da vítima disse que ele havia tomado antialérgico naquele dia e estava sob efeito de remédios que provocam sono.
O motorista, após tentar chamar alguém dentro da residência algumas vezes, desistiu. Deixou a mulher desacordada na calçada e foi embora.
Cinco minutos após o motorista ter ido embora, um homem aparece e leva a mulher em seus ombros. Ele anda por horas até um campo de futebol, onde a jovem foi encontrada seminua. Levada ao hospital, foi constatada a violência sexual.
Uma sucessão de negligências com a mulher, que culminou em uma violência absurda, chocante, revoltante, mas mais comum do que esse país gostaria de admitir.
Digo isso pois nesse último mês de julho foi divulgada a 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, desenvolvida pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
As conclusões desse material ano a ano expõem este Brasil como um lugar perigoso para todas as mulheres e letal para muitas.
Para quem pensava não ser possível piorar, essa última edição mostrou o aumento de todas as formas de violência contra a mulher em 2022, comparado a 2021. Olhando para o relatório, o que dizer sobre as quase 75 mil vítimas do crime de estupro em um único ano?
O número representa o total de 205 crimes por dia, um aumento de 8,2% comparado ao ano anterior. Outra forma de olhar para esses dados é dizer que são registrados um caso de estupro a cada sete minutos.
Mas, veja, o cenário é ainda muito pior, pois essa forma de violência é um crime, por si só, subnotificado. É uma minoria que chega até as autoridades policiais, com força suficiente para uma prisão e eventual condenação.
Considerando um cenário de subnotificação, pesquisa recente do Ipea, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, estima que são 822 casos por dia, o que representa dois estupros por minuto no país, ou ainda uma subnotificação latente representada nos 8,5% dos casos que chegam à polícia.
A pesquisa fez uma análise conjunta da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan).
Fosse qualquer outra situação —uma doença, por exemplo—, seria uma pandemia, tratada com todo o rigor que deve e que nós conhecemos bem. Fosse a morte sistêmica de um segmento da população (o que não deixa de ser, tendo em vista as consequências danosas a curto, médio e longo prazo às mulheres), seria um genocídio, uma guerra.
Agora, sendo estupro de mulheres, será que, de fato, esse crime em escala gigantesca tem sido tratado como deveria pela sociedade brasileira?
Parece evidente que estupro causa repulsa na grande maioria das pessoas e casos como o de Belo Horizonte despertam a revolta para muitos. Mas a provocação que deixo a vocês aqui: não fosse esse caso, provavelmente, muitos dos homens que comentaram e julgaram o ocorrido estariam apenas comentando o resultado do futebol do último final de semana.
Em entrevista à Folha, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, denunciou a falta de investimento no enfrentamento à violência contra as mulheres nos últimos anos.
Programas multidisciplinares importantes de acolhimento de mulheres e seus filhos e filhas foram desmontados, em vez de ampliados, e a pasta que assumiu neste governo (um ministério recriado, diga-se) tem uma dura missão pela frente. Parafraseando Simone de Beauvoir, a de querer a mulher como essencial em um mundo que a vê como inessencial.
Tão grave é esse problema que o governo federal é parte responsável ao enfrentamento, mas é preciso um chamado a governos estaduais e municipais, à imprensa em geral, à sociedade civil, instituições do Estado, iniciativa privada e todas as pessoas que, neste Brasil, vivem em meio a um crime de guerra cometido contra mulheres e meninas, uma gravíssima violação de direitos humanos.