Clóvis Rossi – Folha de São Paulo
Mal estava digerindo o noticiário sobre o massacre em Manaus quando caiu na minha caixa postal mensagem da AOAV (sigla em inglês para Ação sobre a Violência Armada).
Relatava, com alarme, que o número de pessoas mortas em 2016 pela polícia de dois dos países do Reino Unido (Inglaterra e Gales) havia alcançado um recorde na comparação com os dez anos anteriores.
Li e reli três vezes o texto para ver se havia entendido direito. Sim, o recorde de mortos pela polícia em nove meses de 2016 foi de cinco pessoas.
Repito: a polícia da Inglaterra e Gales matou cinco pessoas em 2016, superando o recorde de 2006 (seis pessoas).
No Brasil, para comparação: em 2015, a polícia matou nove pessoas por dia. Repito: nove pessoas por dia versus cinco por ano.
O número de policiais mortos no mesmo ano (393) foi de pouco mais de um por dia. São números do Fórum Brasileiro de Segurança Pública relatados por esta Folha em outubro.
Trata-se de um abismo civilizatório insuperável. Se se quiser a comparação clássica, os dados mais recentes da UNODC (Escritório das Nações Unidas para Droga e Crime), relativos a 2012, mostram que, no Brasil, há 21 homicídios para cada 100 mil habitantes, 20 vezes mais que o 1,2/100 mil do Reino Unido.
Se você preferir uma comparação mais retórica, frequentemente usada, eis a que me passou Iain Overton, da Ação sobre a Violência Armada: “De uma perspectiva britânica, os níveis brasileiros de homicídios são quase iguais aos de uma zona de guerra”.
“Quase” é bondade sua, Iain.
A análise de Overton é mais abrangente: “Ao contrário do Brasil, o Reino Unido não tem uma cultura endêmica de armas nem tem problemas profundamente arraigados com gangues de drogas nem policiais pesadamente armados nem um legado de brutalidade policial e mortes extrajudiciais”.
Ou, posto de outra forma, o massacre de Manaus é apenas um pedaço de um imenso iceberg. Bem feitas as contas, a superlotação dos presídios e o domínio deles por facções criminosas são um pequeno retrato da falência do Estado brasileiro.
Ou, como preferem Robert Muggah e Ilona Szabó de Carvalho, do Instituto Igarapé, em artigo para o “New York Times”: “Os políticos brasileiros carecem da determinação política e moral para fazer a coisa certa”.
Vale para a crise da segurança pública, vale para o conjunto da obra de construção do Brasil.
Só temo que estejamos chegando perto do sombrio prognóstico de Daniel Innerarity, notável catedrático de Filosofia Política espanhol, hoje professor visitante da Georgetown University:
“A democracia sobrevive quando a inteligência do sistema compensa a mediocridade dos atores”, escreveu para a edição desta quarta-feira (4) de “El País”.
É evidente a olho nu que os atores disponíveis no Brasil nos últimos muitos anos são medíocres, com exceções que não superam os dedos de uma mão.
Resta torcer para que a democracia – a melhor coisa do sistema – não escorregue pelas brechas nele expostas com contundência por episódios como o de Manaus.