No domingo de manhã, horas antes de assistir às cenas de barbárie dos ratos imundos que infestam o Brasil, escutei a gravação da minha conferência no dia mais importante da minha trajetória como antropóloga: 8 de maio de 2015, quando me tornei professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Na conferência, contei que, aos 16 anos, quando prestei vestibular, meu desejo era ser professora e cursar faculdade de ciências sociais ou de história. Meu pai me impediu de realizar o meu desejo. Minha imaturidade e, principalmente, meu medo da personalidade violenta e autoritária do meu pai explicam o meu primeiro descaminho.
Convencida por uma prima, prestei vestibular para fonoaudiologia e passei em terceiro lugar na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Um ano depois, pressionada pelo meu pai, que era advogado em Santos e queria que eu me tornasse juíza, prestei vestibular para direito na mesma universidade. Cursei apenas seis meses de direito e voltei para a fonoaudiologia.
Nos quatro anos da faculdade eu me tornei uma ativa militante contra a ditadura militar. Cabe lembrar que entrei na faculdade em 1974 e experimentei um clima de violenta repressão política que culminou com a invasão da PUC de São Paulo, em 1977, pelo coronel Erasmo Dias, com a prisão, tortura e espancamento de muitos dos meus companheiros de militância estudantil.
Com 20 anos estava formada e com a certeza de que jamais seria fonoaudióloga, apesar de ter amado o estágio com crianças com deficiência auditiva.
Poucos meses antes de me casar, meu primeiro namorado me perguntou: “Você quer morar em São Paulo ou no Rio de Janeiro?”. “No Rio”, respondi sem titubear, apesar de não conhecer ninguém na cidade.
Com 21 anos, ingressei no mestrado de educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e, dois anos depois, fui a primeira aluna da turma a defender dissertação com uma pesquisa sobre a satisfação profissional de pessoas com deficiência auditiva. Minha militância como diretora da Associação de Pós-Graduação da PUC-Rio foi bastante intensa no período do meu mestrado.
Logo depois, fui convidada para coordenar uma organização não governamental e, durante seis anos, organizei debates, seminários e reuniões com entidades da sociedade civil do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Brasília, que lutaram corajosamente pela democracia brasileira. Participei ativamente, nos anos 1980, das Diretas Já! e do Movimento Nacional Pró-Constituinte.
Em 1987, ingressei no doutorado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e fui representante dos alunos de mestrado e doutorado. Em 1994, defendi a tese “Toda mulher é meio Leila Diniz”. Poucos meses depois, tornei-me professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Meu sonho de criança, apesar dos obstáculos familiares, acabou se realizando.
A minha militância intensa e apaixonada pela democracia brasileira, desde os meus 16 anos, me tornou uma antropóloga obcecada em tentar compreender por que tantos “cidadãos do bem” apoiam e se identificam com psicopatas genocidas, com criminosos odientos e covardes cujo único gozo é destruir, torturar e matar.
No dia 30 de outubro de 2022, com o resultado das eleições, gritei dando pulos de alegria: “Somos livres, enfim! Estamos livres, enfim!”.
No primeiro dia de 2023, chorei copiosamente com a emocionante subida da rampa e com o impactante discurso no parlatório.
Após alguns dias de alívio e de esperança, os ratos imundos saíram novamente do esgoto fétido para infernizar as nossas vidas. Reli, então, o parágrafo final da minha coluna de 11 de agosto de 2021.
“Fascistas não passarão! Os psicopatas genocidas nos transformaram em um país de impotentes, ansiosos e deprimidos.”
“Está muito difícil enxergar o fim dessa tragédia, mas tenho certeza de que os brasileiros que defendem a democracia, a paz e a justiça social são muito mais numerosos e corajosos do que os golpistas covardes que vomitam ódio e violência. Sei que posso estar sendo meio Pollyanna, mas acredito que a vacina contra o fascismo está na nossa união, força e coragem. Unidos venceremos. O povo unido jamais será vencido. Fascistas não passarão! Tamo juntos?”