O homem atual ''kafkanizado''

Desafio reflexivo de Wilson Bueno
encontra o auge em A Copista de Kafka, de tom
sutilmente realista.

Wilson Bueno está entre a meia dúzia de prosadores que conta no Brasil, Brasil medíocre do violeiro e “prosador” Chico Buarque, dos imitadores obsessivos de José Agripino de Paula, dos “poetinhas”, colunistas sociais manés, e outros, analisados por Alcir Pécora, em seu ensaio, verdadeiro divisor de águas da crítica literária, Momento Crítico, de 2004, publicado na revista Sibila.

Bueno utiliza, em A Copista de Kafka, a relação amorosa real entre Felice Bauer e Franz Kafka (1883-1924) para forjar uma ficção, em termos formais, à la Kafka, ou, mais pertinente, à la Wilson Bueno de Manual de Zoofilia, de 1991, valendo-se do objetivismo e da sobriedade ao narrar – o que confunde ficção e relato reportativo, para emprestar certa “credibilidade” ao narrado, ou melhor, ao menos certa “autoridade”, como se reconhecesse, implicitamente, que toda ficção não dá mais conta do real e sobretudo de si mesma, enquanto linguagem, e não passa de blablablá diante de mundo tanatológico do Iraque, de Mianmá e da cidade de São Paulo (que responde por 1% dos homicídios mundiais por ano). Bueno opta por voltar-se, então, para a metaprosa, a prosa sobre a prosa, no caso a de Kafka, e acaba por se lançar a um desafio invencível: A Copista de Kafka está aquém de qualquer Kafka, obviamente. Como quase todos estão aquém de Kafka, obviamente.

O livro compõe-se de pequenos capítulos, uns com a voz explícita de Felice Bauer e outros com a voz de um narrador anônimo. Leiamos o segundo capítulo, intitulado ZBWSK, um rapaz (?) que vive na casa de sua Tia Ludmila e seus filhos autoritários. A personagem se autodefine como “aquilo que restou sozinho no mundo”. A metaprosa emerge quando ele afirma: “…antes meu nome fosse outro e outro o destino. Arrasto as cadeiras da casa; limpo, obsessivo, tarde da noite, o chão debaixo das mesas – sem que ninguém da casa saiba, veja ou ouça…” Metaprosa: a junção do nome ao destino. Cuida-se, pois, de uma situação kafkiana, do nome “anônimo” e impronunciável da personagem ao argumento em si, todavia, sem o toque infernal de Franz Kafka, que, já no início do século 20, destituía as situações de sentindo jurídico ou psicológico (O Processo) ou revelava o absurdo, digamos, total, na personagem Gregor Samsa, de A Metamorfose. Como disse, Bueno quis se imolar, cansado dos reptos comuns. Cito outro capítulo à la Kafka: O Dente, que se transforma em personagem falante: “…o arremedo de um dente fabricado pelo protético…” Ou seja, Bueno tenta aprofundar as situações paródicas, tornando-as mais caricatas ainda: “… ora esfregando em mim a sua grande língua (a do dono); ora a exibir-me em bailes e nos salões a elogiável e lisa textura…”

Chegamos, agora, ao ponto relevante de A Copista de Kafka: o de reintroduzir o grotesco e o absurdo na ficção brasileira por uma via mais analítica e nada pop, esta o verdadeiro mainstream praticado por aqui, sobretudo, pelos jovenzinhos de butique. A dicção reflexiva que mencionei encontra seu auge no capítulo Carta ao Senhor M.K. ou Corcunda análise do medo real, e não fictício de Kafka, que temia

ficar corcunda: “…De poucas coisas, até aqui, tive medo na vida, senhor M.K., mas sou obrigado a vos revelar nestas linhas tortas e talvez este seja o maior motivo que me leva a escrevê-las, de que sofro, todavia, o sagrado horror de ganhar sobre as costas uma corcova…”

Elejo o capítulo Andrômeda ou a Sombra, com o meu preferido, pelo tom sutilmente atual, realista: “…sou, agora, apenas um homem, um homem sozinho que acaba de perder sua maior companhia – a sombra que segue consigo…” O capítulo finda com: “… Há um enunciado muito velho (…), que assegurava serem as sombras, fugidias projeções dos filhos de Andrômeda, seres feitos de espelho, onde a poeira estelar, dizem, refulgia, a lançar sobre terrenos minados, deles, o exato desenho.” É um retrato do homem real, de hoje, do homem 1984, orwelliano e “kafkanizado”. Houaiss ensina que “andrômeda” quer dizer aquele que se preocupa e/ou sonha com alguma coisa; há, também, na etmologia da palavra, o sentido de “medida”. A medida, para Bueno, é o desastre do mundo de Bush & e do “socialismo” datado de Fidel, que, por ora, não sonha mais, diante de infindos “terrenos minados”. Os momentos menos inspirados do livro estão nos três capítulos curtos, onde lança pequenos poemas ou aforismos, à la Leminski, exceto quando escreve, sob o título Alforria: “Um cão que ultrapassa a carroça é um cão livre do dono.” Aqui, depois de seguir os passos Kafka, Bueno reaparece, lírico, como que repropondo o (impossível) sonho, o que nunca faria o autor de
O Processo.

Régis Bonvicino é poeta, co-autor de Um Barco Remenda o Mar/Dez Poetas Chineses Contemporâneos (Martins Fontes, 2007). O Estado de São Paulo. Enviado por Iara Teixeira.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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