
O maldito instrumento não parava de trinar. Alô? Era cobrador. Deve ser, pensei, com a bexiga estourando pelo chopp de ontem no Distinto, seqüência do pesadelo que me atormentava em sonho, a Fernanda Lima a confessar que era travesti.
Lembro-me de chorar na mesa do Distinto. Não, isso aconteceu mesmo, ontem. Mas não tinha Fernanda Lima. Era o Ribeiro, meu colega de colégio, confessando ter comido minha irmã. Na casa dos meus pais. Na minha cama, não. Sem camisinha. Meu sobrinho, quer dizer: sim, ele queria dizer.
Carolhos, sempre achei o Ribeiro escroto, cheio de graxa, vocabulário curto, o pai dele tinha uma oficina que envenenava motores. Como é que a Sílvia pôde. Agora faz sentido o menino ser tão moreno, foi a graxa. A bexiga estava em ponto de explosão. Esqueci de levantar a tampa, encostei braço e cabeça na parede enquanto a mangueira perdia o controle, livre e louca como em Dancin’ Days, a jorrar o excedente noturno.
Saí do banheiro sem olhar a instalação que lá deixei. Vou chamar um curador, talvez seja selecionado para a bienal de São Paulo. Já vi exposição de merda. De mijo, nunca. A idéia é romper os limites da arte: será esta minha declaração à mídia, sob os holofotes.
Olho para a cama, esperando encontrar minha mulher, já acesa, nervosa, reclamando tudo o que sempre tem para reclamar. Epa, a cama daquele lado está composta. Ela não dormiu ali, eu nem vi quando cheguei, se é possível que se imagine como cheguei.
Um bilhete. “Ernani, eu avisei muitas vezes. Fique com os seus bares, as cachaças, os amigos e as sirigaitas. Espero que você encontre outra troxa”. Troxa. Ela jamais teve boa relação com o vernáculo. Menos mal, encontrarei alguém que escreva melhor. Ligo o rádio, alguém sintonizou uma rádio AM. Um sujeito berra que o presidente do Paraná roubou. Desavergonhado, diz ele. Ladrão safado.
Penso no Paraná, que ontem jogou com o São Paulo. Quanto foi mesmo? 6 x 0 para eles. Sim, agora lembro, foi a razão pela qual terminei no Distinto. Deixo meu corpo cair. Uma queda metafórica, acabo de representar o rebaixamento. E já não posso mais acreditar em nada. Sou o meu clube. E a nós dois nada mais resta. Não volto para acender as velas da santa, nem atender o telefone que cobra. Não farei mais promessas. Aceito ser um homem de segunda divisão, talvez a caminho da terceira.