O incrédulo

Hoje amanheci incrédulo. Pulei da cama com o pé esquerdo, eis que sou canhoto, para atender o telefone. Meio dormindo, olhos semi-cerradíssimos (diria Nireu Teixeira) sem saber onde estava o aparelho, procurei apoiar a mão na parede. Errei. Ali estava o altar à Santa Edwiges, mandado instalar pela minha mulher, que acredita ser possível solver causas impossíveis. Queimei a mão, apaguei as velas, derrubei a santa e seu aparato.

O maldito instrumento não parava de trinar. Alô? Era cobrador. Deve ser, pensei, com a bexiga estourando pelo chopp de ontem no Distinto, seqüência do pesadelo que me atormentava em sonho, a Fernanda Lima a confessar que era travesti.

Lembro-me de chorar na mesa do Distinto. Não, isso aconteceu mesmo, ontem. Mas não tinha Fernanda Lima. Era o Ribeiro, meu colega de colégio, confessando ter comido minha irmã. Na casa dos meus pais. Na minha cama, não. Sem camisinha. Meu sobrinho, quer dizer: sim, ele queria dizer.

Carolhos, sempre achei o Ribeiro escroto, cheio de graxa, vocabulário curto, o pai dele tinha uma oficina que envenenava motores. Como é que a Sílvia pôde. Agora faz sentido o menino ser tão moreno, foi a graxa. A bexiga estava em ponto de explosão. Esqueci de levantar a tampa, encostei braço e cabeça na parede enquanto a mangueira perdia o controle, livre e louca como em Dancin’ Days, a jorrar o excedente noturno.

Saí do banheiro sem olhar a instalação que lá deixei. Vou chamar um curador, talvez seja selecionado para a bienal de São Paulo. Já vi exposição de merda. De mijo, nunca. A idéia é romper os limites da arte: será esta minha declaração à mídia, sob os holofotes.

Olho para a cama, esperando encontrar minha mulher, já acesa, nervosa, reclamando tudo o que sempre tem para reclamar. Epa, a cama daquele lado está composta. Ela não dormiu ali, eu nem vi quando cheguei, se é possível que se imagine como cheguei.

Um bilhete. “Ernani, eu avisei muitas vezes. Fique com os seus bares, as cachaças, os amigos e as sirigaitas. Espero que você encontre outra troxa”. Troxa. Ela jamais teve boa relação com o vernáculo. Menos mal, encontrarei alguém que escreva melhor. Ligo o rádio, alguém sintonizou uma rádio AM. Um sujeito berra que o presidente do Paraná roubou. Desavergonhado, diz ele. Ladrão safado.

Penso no Paraná, que ontem jogou com o São Paulo. Quanto foi mesmo? 6 x 0 para eles. Sim, agora lembro, foi a razão pela qual terminei no Distinto. Deixo meu corpo cair. Uma queda metafórica, acabo de representar o rebaixamento. E já não posso mais acreditar em nada. Sou o meu clube. E a nós dois nada mais resta. Não volto para acender as velas da santa, nem atender o telefone que cobra. Não farei mais promessas. Aceito ser um homem de segunda divisão, talvez a caminho da terceira.

Ernani Buchmann, publicitário e paranista roxo.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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