Aos 60 anos, Wilson Bueno acaba de ser incluído em uma antologia norte-americana que aglutina o melhor e o que há de mais visceral na literatura latina. A sua novela Canoa Canoa foi lançada na Argentina por meio de um evento mais do que inusitado. Sobre esses, e outros assuntos, Bueno falou comigo. A entrevista, mais do que longa, inclusive para blog, exclusiva para o Blog do Caderno G; a entrevista revelou-se extensa. Ele conta sobre a sua condição de cronista sem jornal (para publicar crônicas, depois de longa temporada como cronista), recupera o passado à frente do lendário Nicolau, e fala com muita propriedade sobre o fazer literário. Assume-se como, antes de mais nada, poeta.
Nascido em Jaguapitá, dia 13 de março de 1949, no sertão profundo do Paraná, mora em Curitiba desde os 7 anos. Já viveu uma temporada carioca. Acima de tudo, escreveu livros inventivos. São muitos: Bolero’s Bar, Ojos de Agua, Mar Paraguayo, Cristal, Pequeno Tratado de Brinquedos, Jardim Zoológico, etc. Leitor de Clarice Lispector, João Guimarães Rosa, Machado de Assis, William Faulkner, Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, cita uma frase de Kawabata: “Nascer nesse mundo significa ser abandonado por Deus”.
A seguir, o pensamento mais do que faiscante, vivo, inteligente e sedutor de Wilson Bueno.
Por que você não reúne num livro de ensaios as reflexões sobre inúmeros escritores, nacionais e estrangeiros, que publicou até aqui sobretudo no suplemento Cultura do jornal O Estado de S. Paulo? Além, claro, das reflexões, bem mais extensas, vindas a público no site de arte e cultura do UOL, o Trópico?
Muita gente já me sugeriu que reunisse em livro as resenhas, ensaios, enfim toda este material de reflexão sobre arte e cultura brasileiras, tanto as que faço para o Estadão quanto as do Trópico. O próprio Alcino (Leite Neto), meu editor no site do UOL, já me sugeriu que eu o fizesse. Não o fiz ainda porque, penso, não sou crítico nem ensaísta, sou um escritor brasileiro, um ficcionista e poeta, bissexto, que escreve sobre livros e pensa a velha ars litteraria com a mesma paixão com que a flui ou a usufrui. Eu sou da turma da “síntese”. Deixemos os livros de ensaios para o pessoal da análise estrito senso.
Um amigo leitor me liga, de madrugada e diz: Marcio, descobri a pólvora: escritor é inventa-língua. Escritor não pode ser um sujeito gramatical. Escritor, inclusive, nem precisa escrever tudo direito. Escritor pode bem mais que isso. Escritor deve desrespeitar o idioma. Escritor gramatical é caretice, é não-literatura. O que você me diz disso?
Sou suspeitíssimo para responder a essa sua pergunta posto que, de cara, pela minha própria história literária, pessoal, já sou obrigado a concordar com seu amigo. Ao fazer Mar Paraguayo, ali onde borro todas as fronteiras, todas as gramáticas,e chego a inventar uma língua, como diz o grande mexicano Eduardo Milán, secundando o não menor argentino Néstor Perlongher (1949-1992), o que eu quis, e acho que continuo querendo de outras maneiras, é a explosão do idioma, a busca de sua essencialidade, ali onde ele possa, com vigor, alargar os seus próprios limites. Compete ao escritor a tarefa de conferir maior expressividade à Língua. E será sempre a literatura, das artes, a mais empenhada em dar um novo modo de dizer não para as palavras, como também para os gestos da tribo… A Gramática supõe regras, normas, engessamentos… Eu penso a literatura como, dos espaços de liberdade humana, o mais absoluto.
Saudades do Nicolau?
Nem tanto… Acho que alcancei cumprir meu papel nessa área… Me considero mais que vitorioso no desafio de converter um jornal patrocinado pela verba pública, feito dentro de uma secretaria de cultura, numa referência, até hoje, de um jornalismo crítico, de um jornalismo de idéias no Brasil. Me sinto à vontade para falar do Nicolau porque aí se trata de falar de um trabalho de equipe… Fui apenas o regente das várias equipes que por lá passaram, nada mais…
Mas parece que o jornal virou uma lenda… Tal como o Pasquim, o Opinião ou a Joaquim, de Dalton Trevisan…
Sem dúvida… Incrível, não passam 30, 40 dias em que, até hoje, pasme!, depois de 15 anos de minha saída do jornal e do fim do projeto, em dezembro de 1994, que eu não receba um enorme questionário, daqui ou d’além mar, de gente curiosa para saber do Nicolau. Ou porque seja, ainda outra vez, objeto de teses de mestrado, doutorado ou mesmo trabalho de conclusão de curso, nas universidades brasileiras, e não só brasileiras, ou porque alguém ou algum grupo esteja disposto a se entregar à aventura de fazer coisa semelhante, em matéria de publicação cultural. Foi para mim, pessoalmente, uma aventura fascinante. 56 edições, 8 anos de rigorosa periodicidade, primeiro mensal e depois, até o fim, sem falhar nunca, bimestral… E a alegria do trabalho total: criei o título, fiz a edição-piloto rigorosamente sozinho. E depois, na continuação, as equipes fantásticas – até a derradeira das edição…
E por que acabou, inclusive no auge, com mais de 50 mil exemplares, 20 mil dos quais destinados a assinantes do Brasil e do exterior? E depois de todos os prêmios – nacionais e internacionais?
Acabou porque o Jaime Lerner, assim que assumiu o governo do Estado, resolveu passar o tablóide para as mãos de um velhote esclerosado, recém-nomeado seu secretário de Cultura (ou de Anti-Cultura, para ser mais preciso…) e este, com a conivência, claro, do Lerner, resolveu melhorar o jornal. A primeira edição deles pôs o Paraná e a cultura paranaense de cara no chão, num enorme ridículo… Imagine, a matéria de capa, de uma vergonhosa edição monográfica, era inteiramente dedicada aos pracinhas brasileiros que lutaram na FEB… Nada contra os pracinhas, claro, mas um soldado na capa do Nicolau causou espécie… Diz a lenda que Paulo Francis devolveu o exemplar dele diretamente ao Palácio Iguaçu, escarrado… Eu acho que essa é e seguirá sendo uma mancha na biografia de Jaime Lerner.
E essa antologia, hein, Wilson?… A The Oxford Book of Latin American Poetry que acaba de ser editada em Nova York, pela rigorosa Oxford Press University, a cargo de Ernerto Livon – Grosman e Cecilia Vicuña a abranger nada menos do que 500 anos de literatura latino americana, com nomes de extrema importância… O que tal empreendimento representa para o cenário literário?
É, sem erro, a mais abrangente e seletiva antologia editada nos Estados Unidos até hoje sobre a literatura latino americana. Foram mais de cinco anos de trabalho. São quase 700 páginas, de livro em formato grande, com os textos todos, brasileiros e de língua hispânica, acompanhados da devida tradução ao inglês, mais uma minuciosa avaliação/apresentação de cada autor. Temos ali do anônimo poeta primevo do México ou do Peru, por exemplo, a Jorge Luís Borges, Castro Alves, Drummond, Ruben Darío, Lezama Lima… Do Paraná, veja você, somos três – Paulo Leminski, Josely Vianna Baptista e este locutor que vos fala. E, pasmo de horror constato, só quatro brasileiros vivos estão na antologia norte-americana: Augusto de Campos, Décio Pignatari, Vianna Baptista e este vosso cantor…
Você acaba de publicar, na Argentina, um novo livro em todos os sentidos: a novela Canoa Canoa, em edição bilíngüe… A Agência Estado distribuiu a notícia informando que o lançamento do livro aconteceria via teleconferência… Como se deu isso?
É, mais um livro… Desses fenômenos curiosos – a novela está saindo primeiro lá, na Argentina, antes de no Brasil, pela Editorial Babel, uma aguerrida editora que trafega entre Buenos Aires e Córdoba… Não vi o livro ainda. A não ser virtualmente… Através de minha webcam aqui em Curitiba me comuniquei, num telão, com um auditório cheio em Córdoba… A coisa mais inusitada do mundo, o admirável mundo novo ao vivo e em cores…
E em que consiste Canoa Canoa?
Uma viagem pelo sertão profundo do Paraná, ao tempo em que o Paraná tinha sertão e não este ondulante mar de soja – daqui até as barrancas do Paranapanema… O Estado só tem hoje uma percentagem ínfima de sua floresta nativa… Uma coisa catastrófica que foi se acumulando historicamente…Uma pena, é triste de se ver… Canoa Canoa é uma novela brevíssima e que ousa recompor essa geografia original. É a história de uma Canoa que perdeu seu Canoeiro e o procura agora de rio em rio, levada pelo vento e pelas grandes chuvas, e com os rios conversa, canoa e canoa, água e água… Me honra muito o prólogo de mestre uruguaio Roberto Echavarren – “El agua del habla”, o título… Ah, os rios e a fauna e a flora, uma vezes verazes, outras pura ilusão, a mágica do Tempo e os ventos, o ciúme, as dores de amor, os derruimentos, os horrores e os medos primitivos… Um negócio, lembra Echavarren, conradiano… Foi de propósito… Ao menos a intenção.
Você foi homenageado há algum tempo em Buenos Aires, pelo grupo que faz a famosa revista portenho-brasileira, Grumo. Ao mesmo tempo lançou lá a edição argentina do Mar Paraguayo. Como foi a experiência?
Me deu muita alegria. Acho que a única coisa que a literatura a rigor dá para quem escreve é mesmo alegria… Autores do meu gênero, dinheiro?, esqueça… Fiz a leitura de um fragmento do ainda inédito Novêlas Marafas, no MALBA, em Buenos Aires, que eu tenho a pretensão de aspirar sejam as minhas sagaranas portunhólicas, são 4 novelas e 3 poemas em prosa, no mais salvaje portunhol mesclado de guarani, esssa língua encantada… Também nos arquivos da Planeta… A sair quando der bom tempo… A Grumo publicou um respeitável dossiê sobre meu trabalho como um todo… E o lançamento do Mar Paraguayo argentino, surpreendente, num espaço punk pesado… Lotado. Heavy-metal. Maconha e vinho… Um show…
Você se considera poeta ou prosador?
Difícil falar da gente mesma, nesses casos, não é mesmo? Mas acho que sou essencial e fundamentalmente poeta. A minha visada do mundo é a de um poeta. Agora, o terreno em que julgo melhor me mexer é sem dúvida o da ficção, o da narrativa ou da contra-narrativa, ou da para-narrativa, como queira… Sou, ou penso que sou, um escritor de fronteiras – literal e figurativamente… Estou sempre na fronteira. Sou um escritor de fronteiras e também um ser humano na fronteira entre o pasmo de viver e o sagrado horror à morte, essa pantera…
Mas você também é cronista e, curiosamente, nesse momento, um cronista sem jornal para escrever…
Pois é, veja você, foram nove anos, sem falhar um só domingo, isto apenas no jornal O Estado do Paraná… Some a isso mais dez anos, anteriormente, igualmente todos os domingos, na Folha de Londrina, então Folha do Paraná, também sem falhar um só domingo… E, antes disso, 5 anos na experiência revolucionária que Mussa José Assis imprimiu ao hoje legendário Correio de Notícias, alternando com Paulo Leminski, três vezes por semana. Aliás, aqui, pela primeira vez, a revelação de um segredo: chegamos até por duas, três vezes seguidas, feito moleques, a trocar de papéis – eu escrevia o texto dele e e ele escrevia o meu… Fizemos o diabo… Foi uma época inesquecível … Capas inteiras, capas, veja bem, do caderno de variedade, de repente só com cinco haicais meus ou do Paulo, especial e apaixonadamente ilustrados por Cláudio Seto ou Rogério Dias. Pra emoldurar…
Traduzido em diversos países (quantos?). Estudado em universidades (quantas? onde?)
Recomendado para leitura obrigatória para vestibular(onde?). É, parece que me descobriram por aí… Claro, não são massas milionárias de leitores… Em certos círculos os meus livros têm sido muito lidos, estudados principalmente… Fiquei comovido ao saber que circulam entre hispânicos de Nova Iorque fotocópias de Mar Paraguayo, estropiadas algumas, cheias de rabiscos e anotações… Escrevemos para ser amados, é sempre uma busca de mais e mais amor hasta la derradera ternura… Aliás, perdi totalmente o controle do Mar: ora é objeto de seminário na Universidade do Cabo, imagine…, ora é tema de uma conferência na Sorbonne… Em Berkeley, além de estudos em revistas especializadas da UCLA, foi tese de mestrado… Na nossa gloriosa USP também… E em BH e em Porto Alegre e em Santa Catarina, e nos Mato Grosso…
E não houve uma tradução, estrito senso, do Mar?
Acho que você se refere às diabólica tradução do intraduzível Mar Paraguayo para o Francenglish, por Erin Moure, do Canadá, Québec, o guarani sendo substituído pelo mohwac, uma língua de esquimó… E, não sei se você sabe, para o início de 2010 será concluída a tradução integral do livro, pelo schollar americano, Chirstopher Larkosh, de Chicago, inteiramente em Spanenglish… A tradução já vai adiantada e ele resolveu abolir do livro o guarani, não encontrando o substituto lá para a transcriação dele da novela que ficará assim apenas em inglês contaminado de espanhol… Li alguns trechos. Poesia pura a expressão torturante e torturada do Spanenglish.
E você está publicado em vários países…
No México, no Chile, em Cuba, na Argentina, no Canadá, nos Estados Unidos, no Peru, Uruguai – seja em antologias ou em livros integrais. Veja você que agora me descobriram as cartoneras. O Gato Peludo e o Rato-de-Sobretudo, traduzido ao espanhol, ao inglês, ao portunhol, e agora ao francês, roda a latinoamérica e outras plagas, contribuindo talvez para este fenômeno fantástico que é o das cartoneras, ONGS que trabalham com carrinheiros, com catadores de papel e fazem livros com eles, livros que vendem a preços bem mais dignos do que aos que eles seriam obrigados se caso vendessem apenas o papelão para a máfia dos recicláveis…
O fenômeno cartonero é digno de nota…
Sem dúvida, crianças, meninos de nuestra América, também carentes, geralmente filhos de carrinheiros, trabalhando em oficinas de design, fazendo capas, criando miolos em computadores, costurando , monitorados por nomes das artes plásticas, do design, tipógrafos-artesãos… Tenho a honra de ser, junto com Piglia e César Aira, os três mosqueteiros inaugurais desse movimento na contracorrente das megaeditoras, das quais infelizmente precisamos para existir de fato, o que é um contrasenso, ainda que a mais pura verdade… Do Uruguai ao México passando, claro, pelas brasileiras Dulcinéia Catadora (São Paulo) e Katarina Kartonera (Santa Catarina) andam uns três ou quatro títulos meus, os direitos autorais inteiramente cedidos para fazerem o que bem entenderem… Acho que Aira e Piglia andam por aí também – com uns 4, 5 títulos cartoneros.
Recomendado para leitura obrigatória para vestibular…
Sim, depois de existir nos vestibulares da Federal do Paraná só como opção de erro, já tive dois livros indicados ao exame vestibular obrigatório, no Brasil. Fiquei feliz pela lembrança do meu nome junto a escritores que admiro, mas, francamente, ser estudado forçadamente me parece uma coisa indesejável… Tenho receio de que os estudantes fiquem com medo de mim, e venham a me detestar para sempre… Houve uma lista da UFMS em que só tinha eu e o Manoel de Barros (95 anos) vivos. O resto eram clássicos – de Anchieta a Machado de Assis… Peguei um papo na internet, num desses chats de literatura, em que dois rapazes me desancavam… Enquanto um dizia que eu era insuportável, outro complementava que de fato eu era mesmo um chato, e chato agora pela segunda ou terceira vez posto que matéria de exame que decide a entrada de alguém para a faculdade… Meu Deus!…
Para você o que é a literatura de Wilson Bueno?
A busca, esforçada, com que há décadas procuro, das palavras certas, a mais humana. Com a consciência de que só a palavra não salva, mas a minha parte, queira ou não queira. Eu sou de parte com a palavra (diria o Manoel de Barros)… Nem sei se faço literatura. Escrevo, só isso. E escrevo, antes de mais nada, para me salvar de mim mesmo.
Um trecho de prosa, Chuvas:
Bicho líquido de fiel transparência, as chuvas chovem no zinco de nosso teto humilde com a graça quase invisível de ariscas lagartas, e mínimas, muitas, coleantes, uma que vez cândidas. Quis no verão sua morada, e o ímpeto com que serpenteia da nuvem ao telhado e dali às caleiras da casa, ninho suspenso entre o arrozal e as águas. Há, contudo, diversas espécies de chuva – de chuviscagens a chuvões, veros maremotos, bebendo a Terra, rios e lagos, riachos e cascatas. Se me sugas feito um vício eu sou a chuva que teu chão lambe com uma volúpia de amantes entranhados – um no outro encharcados até a última gota e a derradeira raiz mais chã. Lavas-me o rosto a esguichos; brinco de intempérie sobre o vosso ventre. Líquidos e miasmas, cobrem meu corpo vossas mágoas. Águas? Cantam as calhas nosso lamento, longe, enxurrada em lá maior, aguaceiro, coral de anilhas.
Um trecho de poesia, 10:
Despir, do Amor, a metáfora,
Vestidos, saias, anáguas
A paráfrase com que se apascenta
O beijo, o enlevo, o sexo, o gozo.
Despir, do Amor, os brincos,
Vidrilhos, pulseiras-de-estrasse.
Decantar, do Amor, dele, a sinistra,
Oscura face – entre mim e eu
O erro, a gramática fixa.
A explícita farsa do não-Amor
Ao rubor da face – máscara ? – .
Curar, do Amor, o símile –
Sua possível consistência de plástico.
Blog do Caderno G/Gazeta do Povo. 5 de outubro, 2009.
Uma resposta a O inventa-língua Wilson Bueno