José Padilha – Folha de São Paulo
A série “O Mecanismo” é uma dramatização inspirada em um conjunto de acontecimentos reais, apresentada de forma a ilustrar uma tese. Eis a tese, em cinco enunciados:
a) No Brasil, a corrupção não ocorre esporadicamente; ela é o mecanismo estruturante da política e da administração pública, um mecanismo que opera nos municípios, nos estados e no governo federal; no Executivo e no Legislativo, e também nas cortes judiciais constituídas por indicações políticas.
b) As campanhas de todos os grandes partidos do Brasil são financiadas por empresas que trabalham para o Estado. Uma vez eleitos, políticos desses partidos montam coalizões com base na distribuição de cargos que auferem controle sobre o orçamento público. Quanto mais poderoso for um político, maior o quinhão que lhe cabe.
c) O Estado, assim loteado, contrata as mesmas empresas que financiam as campanhas políticas dos grandes partidos, superfaturando orçamentos.
d) Parte da fatura se transforma em financiamento de campanha para o próximo ciclo eleitoral, e parte vira caixa dois e propina.
e) O mecanismo não tem ideologia; ele opera nos governos de esquerda e de direita.
Na série “O Mecanismo”, assumimos que esses enunciados são verdadeiros. Isso é fato ou ficção? O que aconteceria em um país onde o mecanismo operasse de fato?
No mínimo, três coisas:
1) A polícia e a Procuradoria se deparariam constantemente com casos de corrupção sistêmica.
2) A classe política criaria legislação específica para impedir que as investigações desses casos gerassem punições para seus membros, pois, na ausência de legislação assim, o mecanismo não sobreviveria.
3) Se alguma contingência histórica permitisse que uma investigação de corrupção fosse levada a cabo nesse país, em uma área de orçamento público significativo, a política como um todo seria implicada na investigação.
O Brasil satisfaz essas condições?
Não vou perder tempo analisando as duas primeiras. Sabemos que sim. No que tange à terceira, olhemos para a Lava Jato e a Petrobras.
Que contingencia histórica permitiu que a Lava Jato acontecesse? Claramente, foi o fato de uma pessoa sem nenhuma experiência política ter chegado à Presidência. Só pode ter sido por falta de traquejo que Dilma Rousseff sancionou, em 2013, uma emenda à lei de delações premiadas que permitiu que acordos de delação fossem celebrados com doleiros, empreiteiros e administradores públicos.
Foram acordos desse tipo que revelaram um extenso esquema de corrupção na Petrobras, envolvendo as maiores lideranças políticas do país, inclusive o patrono político de Dilma, Lula da Silva.
Hoje, a Lava Jato tem US$ 11,5 bilhões em recuperação judicial, sendo R$ 3,2 bilhões já bloqueados. Se não há corrupção sistêmica, de onde veio esse volume de dinheiro?
Ora, é inegável que o mecanismo opera no Brasil, e é inegável que os grupos políticos de Temer e de Lula se beneficiaram dele. Sendo esse o caso, qual o motivo para os violentos e desonestos posts que alguns formadores de opinião de esquerda dispararam contra os atores e autores da série “O Mecanismo”?
Para entender sua natureza, precisamos olhar o que ocorreu com a opinião pública pós-Lava Jato.
Sabendo que O Mecanismo existe, podemos afirmar que:
a) Se a nova lei de delações premiadas tivesse sido sancionada com o PSDB no poder, os políticos denunciados teriam sido Aécio, Serra e FHC. Mas, como a lei foi sancionada com PT e PMDB no poder, os políticos denunciados foram Palocci, Lula, Cunha, Cabral e Temer.
b) A mídia de direita usou essa contingência histórica para atacar a esquerda, como se a direita não fosse corrupta.
c) O PT usou essa contingência para acusar a Lava Jato de partidarismo, como se não fosse inevitável que petistas fossem pegos primeiro, dado que estavam no poder.
Criou-se, assim, um ambiente irracional e polarizado, em que o dogmatismo ideológico da esquerda radical e o cinismo pragmático da direita fisiológica passaram a trabalhar juntos para negar o inegável, o fato de que todas as lideranças políticas dos grandes partidos brasileiros são corruptas.
Hoje, vemos os formadores de opinião de esquerda e os membros da direita fisiológica de mãos dadas, pressionando o STF para cancelar a prisão após condenação em segunda instância. Afinal, para a esquerda isso garantiria a impunidade de Lula; para a direita, a de Aécio, de Temer, de Jucá… O mecanismo, é claro, agradece.
Confesso que esperava mais dos formadores de opinião da esquerda. Pensei que em algum momento da história fossem acordar do estupor ideológico e ajudar pessoas de bem na luta contra o mecanismo que opera no mundo real, em vez de se associar a ele para lutar contra o mecanismo exposto na Netflix.