A foto é de 1999, na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Me lembro bem porque foi a última vez que fui, pois eles não pagavam cachê para escritores. Nem avião. Acho que não pagam até hoje. A Bienal de Brasília, que começa daqui a uns dias, está pagando. E um dinheirinho bem honesto. Mas não era nada disso que eu queria falar. Quis recordar a data e lembrei disso.
O que interessa é o seguinte. Naquele tempo, eu estava na editora Objetiva, dos meus queridos Bob e Isa, e recebi dias antes o crachá com o meu nome. Por um mal-entendido qualquer, quando cheguei ao hotel tinha outro crachá, também com o meu nome, mandado pelos organizadores da Bienal. Mas não era nada disso que eu queria falar. O que interessa é o seguinte: eu fui com os dois crachás, idênticos. Tinha lá um lugar reservado aos escritores, para onde fui levado assim que cheguei. O uísque era de graça. Naquele momento, o outro único palestrante presente era o Carlos Alberto Parreira (aquele mesmo, capitão do Exército e técnico de seleção), que também iria palestrar sobre não sei bem o quê.
Aí apareceu a minha parceira de mesa, a Cora Rónai, procurando alguém da organização porque o Millôr estava lá fora, sem crachá e, sem crachá numa bienal, por mais millôres que você seja, tem uns lugares aos quais você não tem acesso. Por exemplo, o bar onde estávamos eu, o Parreira e a Cora. Dei um dos meus crachás, ela desceu e logo sobe o Millôr com o meu nome no peito.
“Eu fico incomodado”
Talvez tenha sido um dos momentos de emoção mais forte da minha vida. Uma emoção profissional, meu! O cara era o pai para a minha geração! O mestre! O Millôr era quase 30 anos mais velho do que eu. Cresci lendo o “Pif-Paf”, no Cruzeiro. (Só um parêntese: o meu filho Antonio disse que a morte do Millor – tem gente por aí acreditando que ele morreu – pra ele era como perder um avô. Sim, eu era filho do Millôr, portanto.)
Quando começou O Pasquim, ele tinha 40 e cacetada, e eu, 23. Ousei mandar um texto para ele. E ele decidiu publicar. E dizia isso por aí, como se falasse de um filho dele. Por coincidência, enquanto falávamos mal de alguém, toca o telefone e era o “neto” dele, Antonio, igualmente escritor. Sem falar nada para o Antonio, coloquei o Millôr na orelha dele. Falaram uns quinze minutos. Nunca se encontraram: só de orelhas. Mas foi uma bênção. E o cara ali, ao meu lado, com um crachá escrito Mario Prata.
Mas não era bem isso que eu queria falar. Quando foi montada a mesa para a palestra, éramos eu, a Cora e o Dapieve. E o Millôr sentou na primeira fila, exatamente na minha frente, na minha cara. E eu comecei a gaguejar com o cara ali esperando minhas “inteligências”. E eu disse para o público. É o seguinte, tem um cara aqui na primeira fila me olhando e eu estou ficando incomodado. Ou ele vem aqui pra mesa, ou eu saio correndo. Felizmente, ele foi para a mesa. Mais felizmente ainda, sentou-se e falou por duas horas. Acho que foi por isso que não pagaram a gente, penso agora, 13 anos depois.
“Eu te falei, não te falei?”
Mas não era essa história que eu queria contar.
Foi assim, a verdadeira história: depois da “palestra do Millôr”, fomos cada um para um lado e marcamos de nos encontrarmos às 11h na Nova Fronteira, que tinha um uísque honesto, segundo o Millôr. Nos encontramos e o Millôr me contou que estava caminhando pela feira quando duas velhinhas olharam para a cara dele, reconheceram (segundo relato dele), depois olharam o crachá com o meu nome e foram em frente. “Mas eu senti que elas estavam me seguindo. Até que a mais jovem me cutucou: desculpa, mas o senhor não é o Mario Prata, né?” “Não, não sou, minha senhora. É que…”
Foi cortado pela mais velhinha, que categorizou:
“Eu te falei, não te falei? É o Verissimo!”
Mario Prata|Reproduzido do suplemento “Ilustríssima”
da Folha de S.Paulo, 8/4/2012