Preferindo as baforadas de seu cachimbo de nogueira à injeção matinal de cocaína em solução 7%, segundo a recomendação de um jovem e desconhecido médico vienense, Sherlock Holmes concluiu a leitura dos jornais londrinos de sua preferência – Times e Daily Telegraph – no momento em que ouviu os passos de seu amigo Watson subindo as escadas para o segundo piso do apartamento de Baker Street.
– E então, quais são as novidades? – perguntou o médico ao entrar na sala de estar, lançando uma olhadela nas páginas espalhadas sobre o assoalho, denotando que Holmes já havia lido o que lhe interessava.
– A situação piora a cada dia em Calais, com os milhares de imigrantes que forçam a entrada ilegal em nosso país, cruzando o canal da Mancha – comentou laconicamente enquanto contemplava as volutas da fumaça azulada do puro tabaco da Virgínia que ardia no oco de sua pipa, comprada de um comerciante chinês estabelecido na Oxford.
Com o olhar perdido no infinito, hábito que repetia sempre que sua imaginação divagava sobre assunto que lhe despertava a curiosidade, na verdade sua principal fonte de inspiração, sem olhar para Watson, que por sua vez recolhia as folhas esparsas para passar os olhos sobre elas, Holmes comentou:
– É… mas a situação me parece bem mais complicada em Botocúndia, imenso país localizado no sul da América do Sul, com extenso litoral banhado pelo Oceano Atlântico e, na direção oeste, com um território que exige longa marcha para se atingir a fronteira com os demais países do subcontinente, os de fala espanhola. Em Botocúncia o idioma falado é o português. República presidencialista desde 1889, a estrutura jurídica se divide nos poderes executivo, legislativo e judiciário, com uma série de entidades com jurisdição federal, estadual e municipal, aliás, o que deu origem – entre outras mazelas — a uma formidável teia burocrática praticamente sem rival no resto do mundo.
– Ué… onde você descobriu isso? No despacho do Times sobre uma tal operação Lava Jato, da Polícia Federal, não há nada sobre o que você acabou de falar…
– Elementar, meu caro… logo no primeiro volume da Britânica, no verbete Botocúndia, território ignoto descoberto por um navegador português em 1500…
– Mas, afinal, o que está acontecendo lá? – indagou o antigo médico de um regimento inglês de granadeiros.
– Bem, desde que os jornais começaram a informar sobre o assunto quis saber mais e procurei meus contatos no Ministério das Relações Exteriores e na Scotland Yard. Soube então que a Lava Jato é, na verdade, o desdobramento de um caso recorrente de corrupção com dinheiro público que os jornais apelidaram de “mensalão”. Em outras palavras, gente graduada do governo da época passava dinheiro a congressistas federais para garantir os votos necessários à aprovação de medidas indispensáveis para a administração.
– Assim tão simples – resmungou Watson, agora mergulhado no caderno de esportes do Telegraph…
– Ao contrário, o esquema foi minuciosamente calculado para respaldar financeiramente o projeto de poder da turma pertencente ao Partido dos Trabalhadores, cuja semelhança com o congênere inglês é apenas nominal. E deu resultado, porque pela quarta vez o partido elegeu o presidente da República, fato jamais visto no país desde a implantação do sistema republicano.
– Impressionante! Mas, deve ter havido um cérebro privilegiado – alguém acima da média, suponho — que pensou toda essa estratégia. E de onde veio o dinheiro? – E agora Watson encarava Holmes com um ar aparvalhado.
– Sem dúvida, o mentor do esquema foi um dos líderes do partido, o político chamado José Dirceu de Oliveira e Silva, líder nato desde os tempos em que fazia o curso universitário, vindo do interior de Minas Gerais para a grande cidade de São Paulo, no início dos anos 60. Décadas depois o candidato do partido (afinal, a burguesia sempre foi muito forte em Botocúndia), foi eleito presidente da República. Você deve estar lembrado do ex-metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva, líder sindical na região de maior densidade industrial do país, o ABC paulista, desfilando num Rolls Royce aberto no dia da posse em Brasília…
– É mesmo… e lembro também que os pasquins londrinos especularam sobre a preocupação das autoridades quanto a velhice do carro, que podia pifar no trajeto… Mas o dinheiro veio de onde?
– É sabido que uma trama dessa natureza e com essa finalidade precisa de muitos colaboradores. Pessoas de dentro e fora da estrutura governamental. Foi o que se fez, com a serventia de agentes públicos, banqueiros e um publicitário metido a esperto que se achava o reinventor da roda e, atualmente, cumpre a pena de 40 anos de reclusão. O dinheiro saia de empresa subsidiária do principal banco público de Botocúndia, transitava por um banco privado até chegar a uma agência de publicidade que, por sua vez, o repassava em malas e sacos de plástico aos interessados. A responsabilidade de José Dirceu como mentor da ideia foi claramente expressa na denúncia oferecida pelo então procurador geral da República, que o reputou como “chefe da quadrilha” organizada para desviar dinheiro do erário. Na época, Dirceu era ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República, o segundo homem mais poderoso do governo da União, detentor de mandato de deputado federal por São Paulo e, por óbvio, trabalhando em causa própria de olho na sucessão presidencial, quando chegasse sua vez, depois do segundo mandato de Lula. Tinham tanta certeza que o plano daria certo que nem se preocuparam com o lado essencialmente criminoso do mesmo…
– É aquele lance de ir com muita sede ao pote…
– Não deu outra coisa, caro Watson. Muita gente importante foi julgada e condenada à prisão pelo Supremo Tribunal Federal, mas quando se imaginou que a trama estivesse para sempre desbaratada, espocou a notícia que a roubalheira continuara na maior estatal de Botocúndia, por coincidência, uma das maiores empresas petrolíferas do mundo.
– E só faltava o José Dirceu estar novamente envolvido no imbróglio? Se for verdade, o cara é um verdadeiro monstro!
– Você tem toda a razão! Pelo que li nos arquivos do ministério (não posso dar o nome de quem me liberou as pastas), mesmo condenado pelo Supremo e recolhido à penitenciária da Papuda, em Brasília, Dirceu passou a operar um bem articulado esquema de apropriação de dinheiro da citada empresa, num emaranhado que reunia empresários com contratos de serviços na estatal, políticos, lobistas, doleiros e servidores da própria companhia governamental. Segundo a estimativa das autoridades o rombo poderá ter chegado a R$ 6,2 bilhões. Mesmo na cadeia, hoje está em prisão domiciliar, Dirceu continuava recebendo mensalmente sua bocada no formidável fluxo de dinheiro roubado.
– Foi isto que chamou a atenção da Justiça Federal na operação Lava Jato?
Sherlock botou mais fumo no oco do cachimbo e respondeu com um riso sarcástico:
– As investigações seguiram o curso normal, sem açodamento da parte do juiz federal designado para o caso, o doutor Sergio Moro, aliás, um especialista no quesito lavagem de dinheiro. E quando chegou o momento ele assinou o mandado de prisão de José Dirceu, em grande medida pela acintosa atitude do ex-chefe da Casa Civil em insistir desafiando e zombando da Justiça do país.
Levantando-se da poltrona e estendendo o braço para pegar o boné xadrez, o detetive avisou o amigo estar de saída para atender o chamado de um provável cliente. Antes de descer as escadas, concluiu:
– Pela primeira vez em Botocúndia dirigentes máximos das maiores empresas nacionais de engenharia civil foram parar na cadeia e, certamente, serão condenados pelos crimes de suborno, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro. Servidores da estatal também, embora suas penas sejam mais brandas devido à colaboração premiada. Senadores e deputados federais, incluindo os presidentes de ambas as casas legislativas também estão sendo investigados pela Lava Jato. E o próprio José Dirceu já admitiu a amigos que, provavelmente não sairá mais da cadeia por ter perdido a condição de réu primário. Essa lição ele aprendeu bem em seu curso de Direito.
– E a turma ainda dizia tratar-se de mísero pixuleco – gargalhou Watson rompendo sua tradicional fleuma inglesa.