O presente

Costumava observar o rapaz que, por inúmeras vezes, parava à porta de sua casa para fumar. Parecia se deliciar com aquele vício que Henrique, há tempos, não compreendia e pouco suportava, especialmente nas gerações mais novas, que não podem argumentar com a velha desculpa do glamour imposto por Hollywood sobre esse soluçante, curto, voraz, prejudicial, fumacento e fedorento prazer individual. Admitia sua aversão ao cigarro, sim, mais até do que aos desvarios decorrentes da embriaguez e se culpava sempre pelas maquinações instantâneas que consumiam sua tranquilidade.

Henrique contava as vezes em que o rapaz pausava as atividades laborais isoladas em casa para ir fumar do lado de fora e fazia mentalmente a conta sobre a soma dessas pausas no rendimento do trabalho do moço. Enxergava, nesses momentos de irritação também, sua própria sombra de intolerância, personificando-se em um rabugento dono da verdade, julgador das rotinas ao redor de si. Lembrava-se também do caça-gazeteiros da escola, que não contente em criticar e punir a má conduta dos estudantes, ainda fazia-os ouvir uma ladainha interminável e moralista de regramento, que sempre terminava na metafórica batida de continência da frase clássica: “o direito de um termina quando começa o do outro”.

O que mais lhe incomodava, no entanto, era o descarte automático das bitucas de cigarro pelo jovem, cujo mundo parecia orbitar unicamente em torno do próprio umbigo. Fazia até pose para lançá-las na rua e Henrique acompanhava a trajetória em arco ou a reta desenhada no ar que a bituca fazia, a depender da pressa do rapaz em retornar para casa e de como posicionava os dedos para efetuar o disparo. Em indignado silêncio, extraía da observação dos gestos do rapaz ao fumar as pistas para adivinhar que traçado faria a próxima bituca porcamente arremessada. Na maioria das vezes, sua intuição marcava pontos naquele jogo estranho de incompatibilidades, mas de convivência.

Logo, imaginava ele, a volta das chuvas tão esperadas na cidade faria os bueiros da rua devolverem à porta do moço os restos mortais de seu vício, ao mesmo passo em que ofertaria ao observador a possibilidade de regurgitar também suas preleções, sempre alertas e pré-dispostas aos julgamentos alheios. Devolveu sua concentração à pesquisa que consumia seu interesse também entre uma tarefa e a seguinte. Animava-lhe aquela busca e as assimilações adquiridas com o despertar gradativo de sua consciência.

Quanto mais ele estudava sobre o tema, lia e via-se direcionado a inteirar-se, compreendia a força da atração da conexão que o mantinha ligado à Helena. A morte apenas minou ou inutilizou a ansiedade que nutria de estar com ela, de conhecê-la de perto ou de entendê-la para além do que intuía, projetava e criava na alimentação ou como fruto de suas dores e de seus afetos mais espontâneos e ternos. A separação que muitas pessoas traduziriam como definitiva pouco efeito teve sobre o vínculo ou a presença com que ela continuava preenchendo seus dias, suas ideias e seu cotidiano.

Nenhuma fração de tempo era mais isenta de significados ou de lembranças e ele continuava a questionar suas faculdades mentais, enquanto sonhava e devotava seu pensamento a ela. Embora, agora, sua loucura fosse naturalizada como manifestação íntima de dor e de saudades e contava com certa liberdade, pois já não corria mais o risco de se sujeitar às críticas, incompreensões, especulações e represálias dos outros. Era inegável: havia uma desordem mental, sim, por trás de tais pensamentos, fugas e transgressões.

No mínimo do mínimo, pecava, mas era feliz nesse mundo meio “Wanda Vision” que ele criou para manter viva a conexão espiritual que acreditava os unir infinitamente, à revelia das barreiras de tempo e de espaço do plano físico, e que avançava sobre as fronteiras das existências, pelo gatilho da vibração alta daquele amor de almas. Nesse universo e apenas imerso nele, não se culpava ou se questionava por impulsos, distúrbios e devaneios. O sentimento, focado inicialmente na pessoa dela, fazia seu coração transbordar de amor pela vida e pela humanidade.

Longe de se considerar um “religioso”, no sentido rígido do termo e a julgar pela noção convencional que orienta o uso do vocábulo no dia a dia, ele aprendeu com o amor incondicional as bases da “religação” que remete à comunhão espiritual, à fraternidade e a não diferenciação das pessoas por fatores que não sejam os das diversas etapas de desenvolvimento e de aprendizado que existem para todas as almas, em qualquer dimensão em que elas se encontrem. Foi, aos poucos, desenvolvendo essa definição das coisas. Ou a aceitação das próprias alterações mentais que motivam tais pensamentos.

Prosseguia nos estudos e se policiava constantemente para não deixar sua vibração baixar, salvo as indignações humanamente passionais e nos limites do relativo e elástico bem comum. Atribuía às recaídas vibracionais, na mesma proporção, as aferições nos níveis de abatimento, de fraqueza, tristeza, de isolamento ou de aprisionamento, geradores das mais diversas formas de violências entre as pessoas e contra si mesmas. Passou a acreditar que as correntes de frequências baixas são responsáveis por enclausurar e distanciar as pessoas, umas das outras e dos seus propósitos de evolução. Vinha se construindo e moldava-se ao passo dos avanços daquelas reflexões.

No final da tarde, correu à loja do shopping center, à procura de um presente específico. Antes de entrar no prédio, se dirigiu ao portão da casa do vizinho e o abordou, para espanto do rapaz, no momento em que este preparava sua performance de arremate da sessão fumacenta em curso: – Oi, tudo bem? Você não me conhece, mas moro aqui ao lado. Por gentileza, aceite e faça uso deste presente. Na verdade, é apenas uma contribuição cidadã que faço para a cidade e ao Planeta. E virou as costas, sem observar as reações do rapaz, diante daquele bizarro contato. Sua parte, afinal, estava realizada. Tinha uma sensação de dever cumprido com sua consciência ou, melhor dizendo, com seu ego. O comportamento era estranho até mesmo para quem se importa com inquietações como as suas, mas que não procederia daquela forma.

Enquanto subia os degraus de acesso ao apartamento, um vizinho confuso retirava da sacola o embrulho que continha uma bituqueira de alumínio. O objeto serviria para armazenar os dejetos do vício do rapaz que deixariam de ser remetidos aos bueiros da rua. O céu se fechava e logo choveria. Henrique voltou a se lembrar do velho inspetor da escola e o imaginou, dizendo: “o que não se aprende em casa, a vida ensina”.

Percebendo-se, agora, na pele do vigilante da sua juventude, identificou ali mais uma prova de que muita evolução ainda teria de galgar, a fim de se preparar para o ingresso em outra dimensão ou simplesmente para o tão esperado abraço guardado à Helena, caso o desenvolvimento dela também demandasse possíveis retornos e outras modalidade de desprendimentos. Ele queria chegar nesse encontro munido apenas e tão somente da melhor pessoa que poderia ser e se apresentar a ela, o que vinha sendo lapidado com zelo e paciência, embora acreditasse também que, fora deste plano e tempo, se comunicavam intensa e incessantemente. Henrique sabe hoje com precisão quantas idas e vindas cabem dentro do universo de um único minuto.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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