Fazia um lindo dia lá fora quando meu celular pifou. Pela cortina, o amarelo forte parecia gritar: “Ó senhora, nada é por acaso, a senhora precisa se enturmar com a vida, enxergar para fora de uma tela, estou te convidando para uma experiência única de encontro com seu plexo solar”.
Mas eu andava de um lado para o outro repetindo a frase: “Por que, meu Deus, por que não fiz backup, por que não uso o raio da nuvem, por que não passei as fotos pro computador, por que não salvei em outra mídia a entrevista com a dra. Bianca?”. Portanto: caríssimos Sol e todos os cronistas do Brasil que já fizeram textos medonhos sobre um lindo dia sem tecnologia: não me encham o saco!
Passei a manhã inteira em fóruns da internet tentando ressuscitar meu morequinho —sem sucesso. Olhava meu neném preso em uma tela preta com uma maçã branca e só pensava: “Reage, meu tudinho, reage. Sai dessa maçã alva e contemplativa e volta pra nossa relação colorida e agitada”. Botei o aparelho no colo de Buda, grudado com Jesus, rodeado de pedras e folhas do terreiro. Nada.
E o bom-dia para o vizinho? O olhar no fundo dos olhos do moço do Uber? E o carinho com os parentes idosos? Já disse para alguém hoje: “Eu te vejo, eu te enxergo”? Por que disparou em mim o ressoar intragável de uma crônica medíocre em que resgataria o meu verdadeiro eu perdido na multidão de pessoas que perderam seus eus para aparelhos celulares? Foram tantos cronistas que cometeram esse tipo de texto que virou tipo um forró chiclete aparecendo em nosso cérebro justamente para inflamar ainda mais nossos momentos de crise.
Só pensava nas fotos da minha filha fazendo cara de “sai daqui” e nos vídeos dela com seu violãozinho, cantando “o cocô morreu e o xixi ficou arrasado”. Lembrei também do histórico de mensagens com meu namorado. Desde os primeiros cinemas, quando a gente tinha dor de barriga de tanto amor e ficava tentando desmarcar e não conseguia, até entrar em nosso looping de áudios no qual concluímos que, apesar de eu ser péssima e insuportável, ele ainda vê em mim que eu não sou nada disso e vai seguir insistindo.
Almoçar em família é um momento mágico que tantas vezes foi interrompido por mensagens urgentes de trabalho. Naquele dia maravilhoso em que meu celular pifou, eu só implorava para que as mensagens de trabalho pudessem voltar para que eu pudesse voltar e conseguisse, enfim, almoçar em família.
Eu poderia ter usado meu tempo sem celular para perceber que minha filha cresceu e que seus cabelos escureceram. Que eu encolhi e que a musculatura da minha axila caiu mais. Contudo, passei a tarde em uma assistência técnica repetindo para o Xan: “Não, ainda não restaura, tenta mais uma vez recuperar os dados”. Quem somos sem nossos dados? Essa vida documentada, gravada, fotografada e filmada poderia ser salva por um rapaz chamado Xan? Ah, mas e a vida de verdade? Você ainda se lembra dela? E AS PESSOAS de verdade? Esse voice over de cronista ruim me perturbando.
Os livros que eu leria quando meu celular pifasse não foram lidos. Os filmes que eu veria quando meu celular pifasse não foram vistos. A conexão interestelar que eu teria com meus pais não aconteceu nem depois de 20 anos de análise, não seria por causa de uma pane de celular. Sexo não fiz, porque estava com amigdalite (teria feito mesmo assim, mas acho que o André não quis ser contaminado). Se eu estivesse conectada com minha natureza eu teria menos amigdalites? Rotina de autocuidado não fiz, porque já sinto que perco tempo demais enquanto pisco ou bebo água.
Não aprendi nadinha nas minhas 24 horas sem celular.