O que é, o que é, que foi aprovado pelo Congresso e tanto Lula quanto Bolsonaro vetaram? Resposta: a desoneração da folha de pagamento de 17 setores da economia.
Pois é. Lula, Bolsonaro e seus respectivos generais da economia, o petista Fernando Haddad e o liberal Paulo Guedes, coincidiram em alguma coisa.
O fenômeno é tão incomum que obriga a gente a pensar. Será que essa política não é mesmo ruim? Ou será que a política é boa – e ruins são os dois presidentes?
Por mais tentador que seja ficar com a última hipótese, neste caso específico o problema está de fato na desoneração seletiva. Tanto Bolsonaro-Guedes quanto Lula-Haddad fizeram o certo ao tentar liquidá-la.
Os setores beneficiados pela medida discordam, obviamente. Em maio deste ano, eles inclusive apresentaram números interessantes para sustentar sua tese.
Usando dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, o Caged, eles compararam dois grupos de empresas no período entre janeiro de 2018 e dezembro de 2022: as que continuaram contando com a desoneração e as que foram reoneradas na última grande modificação ocorrida nessa política, no começo de 2018.
O resultado é que os setores desonerados tiveram um crescimento de 15,5% no número de trabalhadores contratados, enquanto os setores reonerados tiveram um crescimento bem menor nesse indicador, de 6,8%. Seria a prova de que o alívio dado às empresas no cumprimento de obrigações previdenciárias – pois é disso que se trata – faz com que elas contratem mais.
Ocorre que pouco depois, no último mês de agosto, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Ipea, divulgou um estudo sobre a década que vai de 2012 a 2022 – praticamente todo o período de adoção da desoneração, que começou em 2011, no governo Dilma Rousseff. Em vez do Caged, o pesquisador usou microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, Pnad, e contemplou 87 setores da economia.
Esse recorte mostrou que os quatro setores que mais criaram vagas formais de trabalho durante a década analisada não gozaram da desoneração. Mais que isso, o balanço dos setores desonerados foi negativo: redução de 13% no número de carteiras assinadas em dez anos.
E esse é apenas um entre vários estudos que ao longo do tempo e com várias metodologias, apontaram para a ineficiência da política de desoneração na criação de empregos. Para ficar em um único exemplo, essa mesma conclusão foi alcançada por um levantamento de 2018, que tinha entre seus autores Adolfo Sachsida, que pouco depois integraria a equipe de Paulo Guedes no Ministério da Economia e em 2022 seria alçado ao Ministério de Minas e Energia de Bolsonaro.
Entre os estudiosos do assunto existe uma enorme concordância, o que é raro de acontecer: a desoneração não entrega o que promete. Pior ainda: é uma política discriminatória, que beneficia alguns setores em detrimento de outros. Pior ainda: a se levar em conta a pesquisa do Ipea divulgada neste ano, os setores beneficiados nem sequer são os que mais empregam.
O negócio então é reonerar a folha de todo mundo e ponto final? Calma, que não é isso que estou dizendo.
Ainda que a desoneração não tenha efeitos mágicos, a reoneração com certeza aumentaria os custos das empresas e poderia causar demissões. Ninguém quer isso.
Paulo Guedes dizia que o ideal seria promover uma desoneração ampla, que atingisse todos os setores econômicos, e fazer ao mesmo tempo uma reforma tributária que contemplasse também as necessidades fiscais do governo. Seria uma solução mais equânime. Mas ele nunca chegou a desenhar tal reforma.
Fernando Haddad mostra uma preocupação bem maior com a arrecadação do governo – ou não seria petista –, embora também chame atenção para o fato de que a desoneração, como é feita hoje, criar uma casta de beneficiados e uma casta de “comuns” entre as empresas. Ele diz que vai apresentar uma alternativa em meados de dezembro, quando voltar da COP 28, em Dubai.
Será tarde. O congresso promete derrubar o veto de Lula até o final do ano, como fez com o de Bolsonaro em 2020.
Isso me dá a oportunidade de falar que os dois ministros e seus respectivos presidentes são ruins (eu sabia que essa oportunidade surgiria antes do fim do artigo).
Segundo o livro A World History of Tax Rebellions (Uma História Mundial das Rebeliões Tributárias), do americano David Burg, revoltas contra a cobrança de impostos datam pelo menos da era de Hammurabi (1792-1750 a.C.). Deveriam ser milênios suficientes para os governantes entenderem que o assunto é delicado. Mas os governantes continuam não sabendo falar de impostos.
Se você quer tirar um benefício tributário de alguém, precisa ter uma alternativa pronta. Se for vago e jogar para depois, como fez Guedes, haverá reação dos atingidos e faltará apoio dos demais, que não vão se mobilizar apenas para tornar mais difícil a vida do vizinho, sem ter alguma vantagem palpável à vista.
Se você retirar um benefício tributário dizendo que está preocupado em “recompor a base de arrecadação do governo”, como fez Haddad, pior ainda. Ninguém vai mexer uma palha para ajudar um Estado guloso de impostos e mau gastador, como o brasileiro.
Haddad e Paulo Guedes estão certos em considerar a desoneração seletiva uma política ineficiente e injusta. Aliás, o que não falta no Brasil são regimes tributários especiais – são pelo menos 200, segundo a última contagem. Cada vez que um grupo econômico ganha um alívio na tributação, o resto de nós paga mais, para compensar.
O diagnóstico é claro: seria preciso fazer uma limpa radical nos subsídios, desonerações e regimes especiais que infestam o ambiente tributário brasileiro. Mas isso é apenas um diagnóstico. A solução teria de vir da política – de quem está no poder. Poucas discussões e iniciativas seriam mais benignas que essa.
Mas é batata: cada vez que o governo abre a boca para falar de impostos, joga palavras ao vento ou diz as palavras erradas.