O Ruído do Gelo

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Anne Alvaro (1951, Oran , Argélia ) atriz francesa, atua desde o início dos anos 1970. Ela é provavelmente mais conhecida por seu papel como Eleonore em Danton . Ela ganhou um prêmio César de Melhor Atriz Coadjuvante por O Gosto dos Outros , em 2001, e outra para o Ruído do Gelo em 2011. Alvaro também apareceu em filmes televisivos, adaptações jogo, e séries. Em 2010, na terceira temporada do drama de TV francês, Engrenages .

Um escritor alcoólatra recebe a visita inesperada do câncer. No início acha que é uma brincadeira, mas com o passar do tempo percebe que é tudo verdade. O câncer se muda para sua casa e não sairá nem por um segundo. Les Bruits Des Glaçons, de, Bertrand Blier, com Jean Dujardin, Albert Dupontel, Myriam Boyer, 2010. França.

O tema da morte personificada é antigo. Nos tempos medievais, a imagem da morte estava muito presente. A morte dançava e a morte triunfava. Entre tanta fome, guerra e peste, a morte se convertia em uma imagem cotidiana. Nas gravuras de Hans Holbein, vemos a morte em cenas cotidianas, ao lado de seres humanos, gestos e ações como para arrebatar seu temperamento terrível. Não é de se estranhar que assim fosse, a morte a vida estavam, então, estreitamente relacionadas. Mais ainda a morte e a doença eram sinônimos. Estar doente era morrer. Em Sétimo Selo (1957), de Ingmar Bergman, o cavaleiro que retorna das cruzadas se depara com a peste (a doença) que arrasou o território. Logo, aparece A Morte, aquela famosa Morte de Bergman, e o cavaleiro e a Morte se enfrentam em uma partida de xadrez.

Em O Ruído do Gelo (Le Bruit Des Glacons, 2010), o veterano Bertrand Blier (Linda Demais para Você/Too Beautiful For You, Ménage, Quartos Separados/Notre histoire) retoma o tema da morte representada, da morte convertida em pessoa, através da figura de um homem elegante, formal, interpretado por Albert Dupontel. Um dia, ele bate à porta de quem há de morrer em breve, um escritor bêbado e em crise, interpretado por Jean Dujardin, ganhador do Oscar. A morte, neste caso, se apresenta como doença (a relação segue ainda nos dias de hoje). A morte é o câncer do escritor. Mas, além disso, esta doença-morte tem algo de mefistofélica. Essa elegância, esse porte, esse temperamento entre o afável, sedutor e misterioso, não deixa de nos lembrar o diabo “redimido” de Milton, mas, sobretudo, de Fausto, de Goethe. Umberto Eco em sua História da Feiúra também nos lembra de Dostoievski em Os Irmãos Karamazov: «Era um senhor, ou melhor dizendo, uma espécie de gentleman russo, não tão jovem, qui frisait la cinquantaine, como dizem os franceses, com fios brancos em seus fartos cabelos escuros e sua barbicha aparada.”

O demônio laico se embeleza. Não quer andar pelo mundo assustando, mas seduzindo. Na sedução, há maiores possibilidades de condenação. O demônio de Robert De Niro em Coração Satânico (Angel Heart, 1987) é elegante. Quase um dandy, ele contrata o detetive Harry Angel (Mickey Rourke) que, sem saber, começa a buscar a si mesmo. Angel perdeu a memória e esqueceu que tem um pacto com o diabo. O nome do personagem de De Niro: Louis Cyphre. Em O Advogado do Diabo (The Devils Advocate, 1997), o diabo é também um sedutor, um advogado poderoso (Al Pacino), armado de uma teia de sedução que enreda outro jovem advogado (Keanu Reeves). Al Pacino, neste papel, é um charmoso advogado, um imã irresistível, rodeado de sucesso e bem-estar. Claramente, um diabo capitalista. Mais adiante, em Constantine (2005), o diabo segue sendo um elegante personagem, mas, desta vez, vestido todo de branco e com os pés descalços, sujos de lama. Peter Stormare nos entrega, aqui, a magnífica interpretação de um Satanás interessante para o espectador e, por que não, simpático: é sarcástico, é misterioso, é inteligente e, ao mesmo tempo, é um trambiqueiro. Isso sempre o diabo foi, um grande trapaceiro, um grande trambiqueiro, um malandro de primeira. Para chegar nisso, o diabo laico é obrigado a ter, sem dúvida, certo toque de empatia com suas vítimas.

Mas, estou indo pelas beiradas? Falava da morte e da doença e, de repente, me pus a falar do diabo. O que tem a ver o filho rebelde de Deus com tudo isso? Pois, pensemos, por exemplo, na relação entre a doença e o pecado na Idade Média. Acredita-se que quem fica doente é porque pecou. A peste era um castigo de Deus aos pecadores. O pecado, quem o contamina com ele? Satanás. Satanás contamina a alma frágil que se deixa tentar. Temos aí, sem dúvida, uma relação clara entre doença, morte e demônio. O câncer que começa a acompanhar o escritor em seus temas do dia a dia, é a Morte personificada, mas também é uma espécie de diabo brincalhão. Pode ser que não seja, é o mesmo que dizer que não seja um demônio, mas algo dessa herança, desse laço subterrâneo que permanece ali, na figura dessa doença personificada, doença-morte, doença-demônio.


Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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