O tempo e a saudade

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© Myskiciewicz

O ano era 1952 e o governador do Paraná era Bento Munhoz da Rocha, ainda hoje um dos legítimos (e poucos) estadistas que dirigiram o estado. Homem de ideias largas e pensamentos avançados, o governador convidou o amigo Arnaldo Pedroso d’Horta para uma longa viagem pelo interior, da qual também participou o então repórter Rubem Braga.

Topo com a informação, no meu caso inteiramente desconhecida, ao ler a biografia escrita por Marco Antonio de Carvalho – Rubem Braga, um cigano fazendeiro do ar (Editora Globo, SP, 2007). A princípio, a viagem pareceu para o jornalista mais uma tediosa comitiva de políticos “engolindo toneladas de poeira e quilômetros de discursos”.

Braga e d’Horta produziram uma série de reportagens retratando o surgimento de uma nova sociedade, especialmente em Curitiba, em que a reflexão profunda do cronista ainda no futuro, ao pegar a vereda das aparências diria que “o progresso urbano trouxe benefícios e confortos sem destruir o que há de bom e generoso na vida de uma cidade pequena”.

O prefeito eleito Rafael Greca de Macedo, que alardeia incomensurável amor por Curitiba, deveria ler com atenção não apenas essa frase de Rubem Braga, mas solicitar de sua equipe uma proficiente busca da série de reportagens sobre o Paraná do início dos anos 50, para compreender que nem só de totens e portais vive um moderno gestor.

Voltando ao Rio, Rubem lançou o semanário Comício, que cumpriria a extraordinária façanha de rodar 20 edições. O mais importante, contudo, foi a equipe reunida naquela que foi uma das mais “alegres” redações da cidade. Vejam só o Butantã: Joel  Silveira, Sergio Porto, Newton Carlos, Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Eneida, Claudio Abramo, Lúcio Rangel, Sábato Magaldi, Helio Fernandes, Edmar Morel, Paulo Mendes Campos, Carlos Castello Branco, “e uma certa Teresa Quadros, encarregada da seção “Entre mulheres”, pseudônimo sob o qual se escondia Clarice Lispector”.

Como revelou o biógrafo, a revista semanal impressa nas oficinas da Última Hora, do Rio, infelizmente teve vida breve. Nas últimas edições, o poeta amazonense Thiago de Mello atuou como uma espécie de secretário de redação e, assim, encarregava-se de levar os originais para a impressão. Certo dia, o chefe das oficinas informou a Thiago que a ordem implacável de Samuel Wainer, dono do jornal, era imprimir somente após o pagamento da edição anterior.

Mello avisou Braga, que não perdeu tempo: “Venha, vamos beber um uísque. E comemoraram juntos o fim da Comício”, conforme anotou o poeta em suas memórias cariocas.

Poucos meses depois desse episódio surgiria a revista Manchete, para ocupar o espaço antes ocupado por O Cruzeiro, de Assis Chateaubriand. Aqueles que sabem do que estou falando não têm a menor dúvida de que essas foram nossas melhores publicações ilustradas sobre a vida, hábitos, costumes e comportamento num mundo que se agitava com as transformações sociais e políticas, que ainda hoje deixam saudades entre leitores de fino gosto.

Adolpho Bloch, o dono da nova revista foi descrito por Marco Antonio de Carvalho como “folclórico, bonachão, mais interessado em editar uma revista de fotos que de texto”, atraindo “praticamente toda a redação de Comício para a rua Frei Caneca, sede da Bloch”.

O primeiro diretor da revista foi Henrique Pongetti, substituído por Otto Lara Resende, que reúne uma equipe de fotógrafos e abre páginas para seis cronistas: Pongetti, Paulo Mendes Campos, Sergio Porto, Antonio Maria e Rubem Braga.

A crônica, como estilo literário, viveria sua época de ouro enquanto a revista durasse, e Rubem Braga seria um dos autores preferidos e badalados pelo público. Seduzido e comovido pelas mulheres, assegura Carvalho, o ainda jovem cronista capixaba descrevia “sereias de unhas vermelhas, roupões coloridos, de corpos beijados pelo sal do mar, pelo ouro do sol, pelos olhos masculinos”, reconhecendo com toda a razão: “É por elas que os homens suam nos escritórios do centro, nas oficinas dos bairros, nas fábricas dos subúrbios. É por elas que os homens vão ao barbeiro e à avenida, às casas de jogo e às casas de penhores, ao baile e ao necrotério”.

E a conclusão, digna de um fiel discípulo de Machado, não deixaria de cair como uma luva ao transparecer literalmente a verve da irreverência: “Por elas suspiramos, matamos, fazemos versos, compramos brilhantina e vendemos a alma. Por elas fazemos até essa coisa anticarioca que é trabalhar”.

Melhor relembrar essa fase poética e descontraída do Brasil de antanho que vociferar impropérios sobre o resultado das eleições norte-americanas. Sorry…

Ivan Schmidt

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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