As ‘Memórias de um Sargento de Milícias’ não podem ser confundidas com as milícias de hoje
Uma obra-prima da literatura brasileira e seu autor correm novo perigo numa carreira já cheia de acidentes. O livro é o romance “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antonio de Almeida. Maneco, como o chamavam, foi o nosso primeiro jornalista profissional e o primeiro a fazer literatura. Tinha 20 anos quando o escreveu. E 30, ao morrer, em 1861, num naufrágio no estado do Rio.
Tudo foi adverso à existência, apreciação e sobrevivência de “Memórias de um Sargento de Milícias”. Nasceu no formato mais vira-lata da literatura, o folhetim, em 1852, sem assinatura. Em 1854-1855, saiu em livro, em dois volumes, mas assinado por “Um brasileiro”. No caso, com razão: foi o primeiro autêntico romance brasileiro, na temática e no estilo. Mas o livro encalhou e foi devorado pelos ratos no depósito. Um ano depois da morte de Maneco, os amigos o reuniram em um volume e o publicaram, agora assinado. Mas, pelas décadas seguintes, poucos souberam o que fazer dele.
Era um romance realista, antes da invenção do realismo. Mas seria um romance? Era pobre em floreios e rico em descrições da vida do Rio por volta de 1810 —por isto, interessou mais à etnografia do que à crítica literária. E o título era enganador. Não seriam “memórias” do personagem, porque era narrado na terceira pessoa. E também não eram de um “sargento de milícias”, porque a história acaba exatamente quando o herói, o jovem Leonardo, troca a vadiagem por um posto na Guarda Real de Polícia, o que o torna “respeitável”.
E é isto o que quero dizer: as milícias, criadas pelo príncipe regente D. João e descritas por Manuel Antonio de Almeida, não eram as atuais e odiosas milícias, instituição que escraviza, explora e mata moradores de comunidades e escarnece da lei.
Que um livro maravilhoso não se perca por uma associação injusta com esses bandidos à sombra do poder.