Orson Welles jamais faria um filme que precisasse de bula
Um artista morre. Deixa um livro ou filme inacabado e seus amigos resolvem terminá-lo. Para isso, valem-se de anotações deixadas pelo falecido ou de conversas que teriam tido com ele. O resultado é quase sempre um fantasma de camisolão e olhinhos, e ninguém saberá a opinião do artista sobre o que fizeram em seu nome. É justo isso?
Para mim, não. F. Scott Fitzgerald morreu em 1940 pouco antes de terminar um romance, “O Último Magnata”. Seu amigo, o ensaísta Edmund Wilson, usou as anotações que Scott deixara sobre o desfecho e concluiu o livro —parabéns, mas ele não ficou à altura de Fitzgerald. Já o arquiteto catalão Antoni Gaudí morreu atropelado por um bonde em 1926, a meio caminho de completar sua obra-prima, a catedral A Sagrada Família, em Barcelona. Mas deixou instruções para que os discípulos a concluíssem. O que eles agora estão fazendo —e sabe-se lá o que sairá.
Orson Welles começou a rodar “O Outro Lado do Vento” em 1974. Teve mil contratempos e morreu em 1985 com o filme pela metade. Como a história trata de um diretor baseado no próprio Orson, criaram-se lendas: o filme seria o seu testamento, o maior de sua carreira, o maior do cinema. Pois, 40 e tal anos depois, seus amigos e fãs cotizaram-se para finalizá-lo, usando os trechos já filmados, filmando outros sugeridos pelo roteiro e —aí é que mora o perigo— baseando-se no que Peter Bogdanovich diz ter ouvido de Orson sobre o que queria fazer.
Ao som de fanfarras, “O Outro Lado do Vento” acaba de ser lançado pela Netflix. Pois quer saber? Pffttt. Não é o maior filme de Orson, muito menos do cinema, e nem Orson, por mais atrevido, faria um filme que exigisse bula para ser entendido.
Ao assisti-lo e lutar contra o rigor mortis a que ele induz, eu me perguntava: por que não se cotizaram e deram o dinheiro a Orson para que ele mesmo, em vida, terminasse o raio do filme?