Em 1209, a população de Béziers, na França, foi massacrada. As cruzadas, a mando do Papa Inocêncio III, realizaram a tarefa. O representante do Papa, Arnaud Amalric, incapaz de distinguir hereges e religiosos, disse a frase que entrou para a História:
— Matem todos, Deus reconhecerá os seus.
A questão da morte de inocentes em guerra perpassa os séculos. Depois da Segunda Guerra, houve grandes julgamentos: Nuremberg e Tóquio. As potências ocidentais passaram a sensação de que as leis humanitárias internacionais seriam respeitadas a partir daquele momento.
Depois disso, vieram conflitos no Vietnã, Afeganistão, Iraque, e os americanos não foram julgados. De nada adiantaria, pois não aceitam o Estatuto de Roma, muito menos um tribunal internacional.
No entanto, em 2022, em Dublin, Estados Unidos, Brasil e mais 81 países firmaram um importante documento de proteção a civis durante uma guerra. O compromisso é não apenas restringir bombardeios que possam matar inocentes, mas reparar os possíveis danos colaterais.
Israel não assinou o documento. Mas poderia ser levado pelos Estados Unidos a considerar cada vez mais a questão de poupar vidas. Há um longo caminho subjetivo para chegar lá. É importante contestar a tese de que não existem inocentes em Gaza e de que mesmo as crianças são educadas para odiar. Da mesma forma, é essencial ver Israel como uma sociedade diversa, em que nem todos partilham a ideia de povo prometido ou mesmo da supremacia judaica.
As próprias organizações terroristas tornaram-se mais frias e cruéis que no passado. Há algum tempo, Moacyr Góes encenou a peça de Camus “Os justos”. Participei de um debate sobre ela em que se discutia o adiamento de um atentado ao arquiduque por causa das crianças na carruagem.
Os estigmas que a guerra produz em massa estão chegando ao Brasil. Há uma ideia de que a Tríplice Fronteira é uma retaguarda de terroristas. Essa ideia foi inspirada nas investigações da CIA e do Mossad. De fato, houve um caso de colaboração financeira com o Hezbollah. De fato, andando pelas ruas de Foz de Iguaçu, sente-se a presença forte da colônia árabe, assim como nos hotéis de luxo inúmeros visitantes muçulmanos são vistos no saguão.
Mas a colônia árabe em Foz do Iguaçu parece perfeitamente integrada ao clima pacífico do Brasil. Durante a guerra, não houve manifestações de rua como em Londres ou Paris. Nessas capitais europeias, o apoio aos palestinos é muito evidente. Em algumas concentrações, as pessoas chegam a gritar o slogan “From the river to the sea”, a geografia de um Estado árabe que vai do Rio Jordão ao Mediterrâneo, portanto, suprimindo Israel.
Tenho lido artigos em jornais londrinos criticando as organizações muçulmanas, como o Conselho Muçulmano Britânico. Na França, houve proibição de manifestações porque elas associavam o terrorismo do Hamas aos palestinos. Rigorosamente, portanto, as capitais europeias são um centro de apoio à causa palestina muito mais ativo, rumoroso e radical. No entanto não há o estigma, como não poderia haver, de associá-las ao terrorismo.
Digo isso tudo porque fui à Tríplice Fronteira, falei com muita gente, e a maioria não entende por que se suspeita tanto da região, mergulhada em seu cotidiano e vivendo a relativa harmonia da vida no Brasil. Não significa que não se deva investigar. Pelo contrário, se o Hezbollah pensou em fazer atentados no Brasil, é algo muito sério em termos de relações internacionais.
O Hezbollah depende do Irã, que sempre recebeu um tratamento respeitoso do Brasil. Recentemente, um porta-helicópteros e uma fragata do Irã atracaram no Rio. Houve críticas dos Estados Unidos e de Israel. Esse período de guerra se apresenta também como um campo minado, no campo subjetivo.
É preciso andar com muito cuidado, pois, se as guerras ainda aniquilam vidas civis, preconceitos servem para racionalizar o massacre. No calor da paixões, contribuímos inconscientemente, às vezes, para que frases do tipo “matem todos” não desapareçam da história da humanidade.