Os tankas de Wilson Bueno

Escritor paranaense lança Pincel de Kyoto, compilação de 25 poemas feitos segundo a forma japonesa de versejar, que remonta ao século 7. Escrever o tanka é um esforço de penetração em um estado natural do corpo com o mundo que a nossa perversidade ocidental tão desconfiada e matreira não engole fácil, ou melhor dizendo, engole muito atravessado. Nós, ocidentais, acreditamos com tanta cegueira em nossa desconfiança que aquilo que o olho vê ou aquilo que o olho não vê não faz diferença, que aquilo que os olhos conseguem comer, ou não, também não faz diferença. Somos perversos em nosso tanto faz, suspeitamos muito de nós mesmos e de tudo e desprezamos esse esforço. O tanka, com a sua prudência e o seu encantamento oriental, tem tantos séculos de vida (a forma do tanka remete ao século 7) e tanta distância de nossa percepção que parece manter longe demais a possibilidade de nos encontrarmos melhor com ele e com a sua síntese literal: o poema curto, tan (breve, curto) e ka (música, poe-ma).

Alice Ruiz explica que o tanka está ligado ao WAKA, que é um termo genérico para denominar a poesia aristocrática do país de WA, que é o nome do Japão para os chineses. Este pequeno poema, o poe-ma de WA, que mais parece uma caminhada sobre uma plantação de arroz ou sobre uma superfície de água e vento, é formado por 31 sílabas em versos que se dividem numa estrutura de 5-7-5 sílabas na primeira estrofe e 7-7 numa segunda, respectivamente, e está ligado a uma tradição imperial, a uma relação entre o rei e a família real, entre o rei e seus súditos. Um primo distante do tanka é o haicai, surgido no século 16 através das provocações silenciosas de Matsuo Bashô, um superintende das águas do Japão, com 17 sílabas (segue a estrutura da primeira estrofe do tanka), e que, para Paulo Leminski, se representa no ideograma de KAWA, rio, em japonês, uma espécie de “fluxo de água corrente” ou de “sangue escorrendo na parede da página”.

Estes dois pequenos expressos do Oriente parecem ter encontrado nas noites e dias frios de Curitiba, no Paraná, uma morada brasileira com ipês de flores amarelas, porque têm precisão de uma casa para dentro, de um mundo em estado de contemplação natural. E ler poesia quando se mora em Curitiba é morar também um pouco por dentro de um tanka, de um haicai, de uma renga infinita.

Tanto que é de lá que vem um livrinho recente com 25 tankas imaginados para sempre. Wilson Bueno, autor de tantas doces imprudências e de uma variedade de animalidades distorcidas para dar presença à falta que há no corpo (Meu Tio Roseno, a Cavalo; Manual de Zoofilia; Cristal; Mar Paraguayo; Boleros Bar, entre outros), publicou agora, pela Lumme Editor (SP), uma outra compilação desses expressos chamada Pincel de Kyoto. Dizemos outra porque Wilson já publicou em 1996 uma primeira reunião de tankas chamada de pequeno tratado de brinquedos, pela Editora Iluminuras e, como bom inventor que é, usou para isso um trajeto sugerido por Guimarães Rosa:Um dia hei de escrever um pequeno tratado de brinquedos para meninos quietos”. Assim, neste Pincel de Kyoto, faz questão de lembrar, numa advertência, que estes 25 tankas vêm de uns “exatos 99” que escreveu como “os debruns da nudez do Buda” (na definição de Li Tai Po) ou como brinquedos danados para meninos quietos; destes 99, os primeiros 58 foram publicados no pequeno tratado de brinquedos.

E agora, dos 41 restantes, escavou estes 25 pincéis. E é no pequeno tratado de brinquedos que Wilson diz de sua tarefa para dar a um suposto leitor algumas das intenções – porque sem o leitor, diz ele, “o poema é só uma intenção baldia” – de um buscador de prudência e síntese. No poema intitulado o buscador, ele diz:

chuva criadeira

da janela a noite inteira

faz soneto e haicai

no quarto persigo um tanka

exato feito uma lança

Perseguir o tanka – esta exatidão de espada samurai – no Ocidente é perseguir uma série decomposta de movimentos com a linguagem, movimentos que podem levar a ver o semnúmero de nossas tentativas falhadas para capturar o instante. Por isso é que através de cada movimento para uma natureza primeira, que está sempre de passagem no átimo temporal que há em cada tanka, que Wilson postula distância, escala e compressão para sua experiência ocidentalizada. Experiência que está, por exemplo, nos deboches das suas personagens Leocádio e Lavínia Prata e Licurgo Pontes quando habitam a passagem do século 19 para o século 20 em um Brasil cheio de provincianismos e beletrismos, algo que beira o perfunctório, ele mesmo talvez dissesse, numa gastura de uso da forma lingüística reproduzida em todo o texto da narrativa.

Isto se passa no seu interessante romance chamado Amar-te a ti nem sei se com carícias, que foi publicado em 2005 (Editora Planeta), este decassílabo perfeito, mas desbaratado, como somos diante de “onze margaridas”, do “cascalho da rua”, de “uns olhos de abismo”, da “falta da tua fala” , etc.

Num outro poema que antecipa também este Pincel de Kyoto, ou melhor, que anuncia estas sobras preciosas que ficaram guardadas até agora para aparecerem nestas cerdas de agora, Wilson Bueno indica o seu esforço para incorporar o gesto de Bashô, num outro lugar, num outro tempo, de outra forma, mas sempre tentando cumprir o gesto da adaga da noite, enlaçar a lágrima de um peixe, por exemplo.
O poema, não à toa, se chama na oficina de Bashô:

a lua minguante

vitral da adaga da noite

– pincel de Kyoto

velha lágrima do peixe

em um tanque a cena muda

O fato é que esses movimentos do tanka, quase sempre circulares e apontados para nada, tentam dizer do acontecimento frágil que é o homem diante do tempo. Ao tomarmos o tanka na idéia dos debruns que envolvem o Buda, para seguir a sugestão de Li Tai Po citada por Wilson Bueno, entendemos que a força desse lento expresso do oriente está numa espécie de linha que margeia uma figura, um desenho, uma imaginação possível para tudo que é e pode ser o mundo antes de conseguirmos tocá-lo, como está em outro tanka, agora deste Pincel de Kyoto, intitulado mãos:

topázio na água

mil olhos de faca e cacto

antes de tocá-lo

ser dedos de seda e prata

recolhendo a gema calma

É provável que este sereno e forte Oriente do Pincel de Kyoto de Wilson Bueno tenha a ver com algum protocolo problemático que se arrasta e se acotovela diante do fim dos prazos da primeira meta de compromissos internacionais contra o aquecimento global. Mas entre as sobras desmesuradas de metano e de carbono é sempre possível pintar os sapatos de um velho monge com as cores de hoje: “era amanhã tão longe”. E debrum, não custa lembrar, etimologicamente, tem a ver com dobra e com limite e, principalmente, sem muito esforço de lembrança, debrum tem a ver também com aquilo que pode ser a margem de uma ferida cicatrizante.

* Júlia Studart é autora de Livro, Segredo e Infâmia (Editora da Casa) e doutoranda em Teoria da Literatura, USFC, com pesquisa a partir das narrativas de Gonçalo M. Tavares; Manoel Ricardo de Lima é poeta, professor de literatura e autor de 55 Começos (Editora da Casa), entre outros

Júlia Studard e Manoel Ricardo Lima/Diário Catarinense

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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