Ouríssas

Eu, Khorn Gachet, respiro aqui na ilha de Ouríssas e acho que o Deus é aquele que está no quartzo, mas não é o quartzo; é aquele que está na baleia jubarte, mas não é a baleia jubarte; é aquele que está na respiração de Khorn Gachet na ilha de Ouríssas, mas não é nunca – o Deus –, a respiração de Khorn Gachet na ilha de Ouríssas.

Porque Khorn Gachet sou eu e sei que não existo. O que há é o Deus se fazendo de desentendido, um braço de mar atrás das montanhas que circundam a baía e algumas estrelas cadentes que despencam do escuro céu das noites de Ouríssas se Dona Lua não nos deu o ar da graça.

Eu, Khorn Gachet, respiro as luas de Ouríssas. E se é tormenta em mar sinistro, deito ao convés de minha galé errante, posto que, em Ouríssas, não sou o Deus, mas o olho Dele na escotilha – se me faço entender, se me faço entender melhor.

Ouríssas é pequena como uma pedra sob o sol, ao largo dos promontórios de Khür, que ruem sobre as águas, em estrépito contínuo. E povoam, a ilha, os pássaros, além de servirem generosamente, a mim, Khorn Gachet, e à minha não pequena distração, momentos de intenso devaneio ou dessa coisa precária e insuficiente a que chamam alegria.

A última vez que eu, Khorn Gachet, medi, a passos, o diâmetro de Ouríssas, cruzando-a de Leste a Oeste em busca de seu equador perfeito, trombei com nuvens que me fizeram tornar à galé, alguma vez ferido de seus raios e elétricos, estrondos de estilhaçar um coração mais fraco. Eu, Khorn Gachet, também da estirpe militar dos Bragança, logrei resistir aos feitiços de Ouríssas.

Nas noites crivadas de morcego, e sem lua, só o barulho do mar à praia, a hora sabendo a sal, duas vezes ao menos amarrei-me eu mesmo ao mastro da galé, único recurso para não sucumbir ao chamamento terrível das águias e do brilho delas em metálico prata, das águias que silvam, às centenas, cruzando o céu de Ouríssas feito uma chuva diagonal do abismo.

Não crocitam nem piam as águias de Ouríssas, sereias de asas; antes nos convocam a um cio de penas e penachos; escruciante maneira com que o instinto clama por um gozo que é farpa, que é farpa e chama.

Em Ouríssas, afinal, alcançamos, eu Khorn Gachet e meus navais, vencer o pior – a nós mesmos.

E por isso, os navegantes de Hérida somos tão orgulhosos desta ilha próxima ao incessante ruir dos promontórios de Khür. Antes que tudo afunde – de uma só vez e golfada. Ouríssas, Ouríssas, meu amor.

Do livro inédito “Ilhas”

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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