Pacto tardio

Derramou café na mesa. Não conseguiu manter segura a caneca nas mãos trêmulas, quando escutou a repórter dar a notícia no telejornal: Helena morreu! Não resistiu às complicações de uma doença que sofria por anos em silêncio. Tudo nela era quieto. Pessoas mais próximas começaram a perceber os efeitos do progresso dessa chaga em seu mal estar constante e no abatimento físico.

O cansaço vinha consumindo também suas reações e forças emocionais. Nas últimas semanas, como que antevendo aquele desfecho, ela foi se deixando levar, sem impor resistência desesperada. À medida em que as pessoas relembravam detalhes das recentes interações, encontravam também nessas lembranças as pistas das despedidas que a amiga, parente, colega, sutil e docemente, teceu naqueles instantes com disfarçada e gigantesca generosidade.

Pela televisão, Henrique soube que, logo no início daquela manhã, o coração dela, que antes se alternava em movimentos acelerados e fisgadas repentinas de ansiedades e de esperas, parou de bater. Helena era uma figura pública, muito reconhecida no meio profissional, mas também pelos laços familiares e relações sociais estabelecidas. Tivesse nascido homem, seria possível afirmar, sem sombra de dúvidas, que futuramente seu nome batizaria um dos logradouros da cidade. Mesmo um que demandasse às futuras gerações pesquisar na internet para descobrir a história, registros, feitos e vestígios da personalidade homenageada… Uma história da qual ele nunca mais saberia ou lhe fosse permitido acompanhar.

Só conseguiu chorar e o fez convulsivamente diante da surpresa recebida, assim de soco seco na boca do estômago, naquela manhã em que o céu banhava solidário a sua agonia. Era uma dor jamais sentida e que dilacerava toda sua carne. Cortes frios, precisos e profundos riscavam seu corpo, percorrendo todo ele, ao mesmo tempo em que Henrique sentia arderem não só a superfície, a casca, a couraça, como também a própria alma, que gritava de esconderijos que ele nem imaginava possuir para o sufoco de um sofrimento insuportável. Queria ter lhe amparado de alguma maneira, ter segurado sua mão, ouvido suas lamentações, chorado do seu lado; Queria ter lhe animado de alguma forma, caso essa oportunidade se apresentasse, apoiado nas decisões, incentivado seus impulsos corajosos e ajudado ela a encontrar as respostas ou a se conformar e a se resignar diante dos dilemas sem solução. Não estava mais ao seu alcance aquele socorro compartilhado. Outra vez negado.

Caiu de joelhos na frente da TV e afundou o rosto nos dedos pesadamente. Abriria mão de tudo aquilo, das conquistas concretas e das alegrias fantasiadas, da consciência e da mágica daquela conexão, seus sinais e sincronicidades, se essa renúncia tivesse o poder de restituir ao coração dela as batidas, os amores; Ao rosto dela o vigor e o sorriso cativante, de riso contagiante. Faria tal pacto, sim, pedindo a Deus que nem ao menos a conhecesse ou a reconhecesse no caminho percorrido e que o colocasse de volta à rotina medíocre, que o devolvesse a uma vida longa e sem sentido, como a que levava antes de seus olhos se notarem pela primeira vez… Para que ela existisse e ainda pudesse exercitar extrair inúmeras possibilidades da vida. Abriria mão de qualquer sopro de alegria e de paixão, desde o minuto em que abriu os olhos ao nascer, até seu último suspiro, se essa condição patética de existência fosse moeda de barganha na garantia da felicidade e das realizações mais ambiciosas dela. Que tivesse vindo ao mundo para ignorá-la ou para desprezar tudo o que irradiasse de seu sucesso, de seu brilho e dos seus encantos. Preferia isso a suportar sua ausência.

A dor o cegou. Nenhum fundamento ou compreensões o fariam aceitar aquela realidade: Helena se foi! Só soube chorar, pequenino e nu, diante daqueles propósitos absurdos. Por quê? Queria… Nem sabia mais o que querer, pois nada fazia sentido naquele momento. Helena partiu. Ele ficou, ali, prostrado, inútil e desesperado. A chuva enlutou também o dia lá fora e ele se confundiu, perdido, com aquela envolvente escuridão da paisagem ao redor, gritando o nome dela.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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