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Vai lá!
Publicado em Cartunista Solda, fraga, humor, Tânia Meinerz
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Solda
Todo dia é dia
O Contestado
O longa-metragem será exibido em cinco capitais, estreando em Curitiba e Florianópolis (19 de outubro); em seguida, Porto Alegre (26/10), Rio de Janeiro (02/11) e São Paulo (23.11).
Uma guerra que assombra o presente!
Por ser um cineasta cuja obra é seduzida pela ânsia de reverter as falácias e o esquecimento da história oficial, a obsessão reside em responder qual a diferença entre realidade bruta, memória e encenação (territórios minados por onde trafego impunemente), quando convertidos em celulóide e/ou digital?
Desmobilizando essa ilusória noção, resta a única certeza de que entre elas a ficção tem que fazer sentido! Depois, é sabido, o passado como o presente, não permanece estático, está em permanente movimento e mutação. É “outro” toda vez que retornamos a ele. Foi o que me aconteceu ao revisitar a Guerra do Contestado quarenta anos depois (o filme anterior, “A Guerra dos Pelados”, uma ficção, foi escrito e rodado entre 1969/1970, estreando no ano seguinte): ambos mudamos a ponto de não nos reconhecermos mais! Isso é o mais fascinante na formatação de uma narrativa moral que mexe com a história sem procurar atropelá-la nem lhe impor viseiras. Nessa hora sempre me ocorre, como se um chamamento à lucidez fora, frase de um dos personagens de “O mensageiro” (1970), brilhante filme de Joseph Losey: o passado é um país estrangeiro, lá tudo é diferente. Ou seja, é preciso estar sempre com o passaporte em dia!
Drama fundador
Se o Brasil é, muitas vezes, refém ora de explicações apocalípticas ora utópicas (o que nos remete aos fanáticos do Contestado), a começar por esse seu drama fundador, a questão da terra, o epílogo da trágica Guerra do Contestado supera a metáfora, desmonta o mero simbolismo. Tudo fica menor diante do genocídio que a repressão protagonizou nos últimos meses da refrega, e mesmo depois de assinada a paz e refeitas as fronteiras entre Paraná e Santa Catarina.
A história do Brasil, tão a gosto de quem se mira no obscurantismo, é um túmulo quanto a esses eventos únicos em território nacional. Justamente por abrir um libelo acusatório em que ninguém é inocente. Afinal, no Contestado vingaram as primeiras idéias de que o exército não poderia continuar “força tarefa” de “coronéis”. Dali saiu uma jovem oficialidade, alguns ferrenhos inimigos da liberdade e com um olhar preconceituoso em relação ao brasileiro inculto dos sertões e das cidades. Carregados desse ideário e de fuzis e baionetas, protagonizaram as subversões da década de ‘20 (Forte de Copacabana, tenentismo, Coluna Prestes e a dita “Revolução de 30”), estendendo-se à ditadura Vargas e, ao seu derradeiro vagido, o golpe de 64, tornando o século XX e a cúspide do atual numa permanente ameaça à nossa frágil democracia.
Por tudo isso, com uma iniludível modernidade, a Guerra do Contestado, que seria mero levante de fanáticos, mas que além da terra, almejavam o poder, confrontando o nascente capitalismo no interior do Brasil, desvela uma água forte de arrepiar, cujo desfile de algozes é magistral: crimes & impunidade, politicalha, corrupção, desmandos e o famoso “deixa estar pra ver como fica” – aliás, a melhor definição que encontro para definir o Brasil de hoje.
Elenco plasmático
Monges, pitonisas, fanáticos, messias, curandeiros, farsantes, cristãos & mouros, desterrados, kardecistas, mártires, salvacionistas, beatos, “joanas d’arc”, místicos, santarrões, prestidigitadores, assassinos, grileiros, mães-de-santo & babalorixás, mitômanos, videntes, mandões, sebastianistas, conselheiros, “virgens-santas” – um elenco plasmático que ronda e enreda a nação há quinhentos e onze anos, desde quando Cabral deixou aqui os primeiros “neobrasileiros”. Dois grumetes desertores e dois degredados: como o país tem sobrevivido a um carma maldito desses, a impressão digital da bandidagem na sua origem telúrica, é algo que até hoje me comove e fascina. Motor, aliás, anedótico, poético e estético de toda a minha filmografia, francamente, na contramão da história oficial, seja para que lado e viés ela se manifeste.
Foi quando, confrontado com esse panteão místico que contamina do início ao fim, ambos trágicos, a submersa, mal conhecida, quando não, ignorada pelos historiadores, Guerra do Contestado (1912-1916), violento conflito armado sobre posse & usurpação da terra que ensangüentou o centro-oeste de Santa Catarina, que o ex-agrimensor (testemunha de relatos dos sobreviventes que transformou em livro), Euclides Fhilippi, ele próprio militante das ciências ocultas, perguntou, olhinhos azuis de 90 anos:
– O senhor é espírita?
Surpreso, mas deu tempo de responder sem titubear:
– Sou cineasta!
Ele sorriu, mas logo fechando a cara, confidenciou.
– Pois é, senhor Back, há mais de quarenta anos, no nosso centro espírita, aqui em Curitibanos (SC), uma mulher foi “tomada” pelo espírito do Adeodato, o líder dos caboclos revoltosos do Contestado. Foram precisos quatro homens para dominá-la, pois ela, com uma espada imaginária à mão, pôs-se a agredir as pessoas, soltando frases desconexas, mas que nos remetiam ao evento. Impossível remontar e freqüentar personagens e acontecimentos do Contestado sem recorrer às forças do invisível – sentenciou.
Primeiros influxos
Imediatamente, lembrei do poeta Friedrich Novalis (1772-1801), cuja sentença, “Todo visível adere ao invisível” já havia me inspirado há quarenta anos na escritura do roteiro e nas filmagens de “A Guerra dos Pelados” em 1970. Numa cena de incorporação fake do espírito do monge José Maria, “santo guerreiro” inspirador do Contestado, a atriz do filme, Dorothée-Marie Bouvier, no papel de uma das “virgens-santas” e “comandante de fé” dos fanáticos, não conseguia passar a “verdade” da encenação. Então, recorri a um ator que, descobri médium, pois a cada manhã me dizia: “Você tá carregado hoje” e projetava passes exorcizantes sobre o meu corpo! Não deu outra: segurando a mão da atriz fora da cena enquanto filmávamos, ele provocou, eu diria, uma espécie de para-transe nela. A cena ficou soberba. Depois, Dorothée ainda permaneceu minutos intermináveis mediunizada, e eu tendo que ouvir a mãe, francesa, em pânico, me xingando e ameaçando de morte, a propósito, na língua de Allan Kardec (1804-1869), o que não deixou de ser um luxo! Felizmente, o cinema nos salvou: impresso tudo em celulóide, ela está lá, até hoje, em cores, maravilhosa!
Portanto, quando retornei ao tema, há quatro/cinco anos, assoberbado por uma centena de livros, tudo voltou à tona como um cadáver perdido no mar. Algo estranho e horrível que já vem me perturbando nas últimas décadas. Apesar de inúmeros estudos recentes, profundos, consistentes e originais, no meio acadêmico, inclusive, nos Estados Unidos, a Guerra do Contestado vem sumindo, o Contestado está se tornando invisível, seus personagens mortos e o imaginário esmaecendo, ainda que um manto de silêncio, compromisso e medo, insista em corroer o que sobra incólume e acusador. Como se uma sensação de lesa-pátria catarinense (se isso existir!, originário que sou do Estado) me empurrasse para não deixar, sim, insepulto os milhares de corpos mortos de fome, massacrados e torturados clamando por alguns átimos de resgate de uma história madrasta como a do Brasil.
Docudrama
Talvez eu seja, com este docudrama (mix de doc & fic), “O Contestado – Restos Mortais”, o primeiro cineasta brasileiro a fazer um novo filme sobre o mesmo tema (com pegada para-documental, digamos assim, e não ficção pura como em “A Guerra dos Pelados”) desfazendo equívocos pessoais e alumiando novos meandros históricos sobre e em torno da Guerra do Contestado. E isso só foi possível sobrevoando e dando vôos rasantes não apenas literalmente de helicóptero aos principais redutos da resistência cabocla (Taquaruçu, Caraguatá, Calmon, Mattos Costa (ex-São João dos Pobres), Perdizinhas, Santa Maria, etc.), arriscando entendê-lo naquilo que hoje são apenas sombras, esquivas lembranças e um imemorial mítico.
Uma memória mítica absolutamente viva no éter, mas inapreensível a olho e ouvidos nus. Claro, nessa hora remontaram indeléveis à minha mente aquelas inusitadas filmagens com a atriz Dorothée-Marie Bouvier “falsamente” em transe, pois repetia os diálogos que eu havia escrito: agora, o Contestado vem à luz dos refletores e das câmaras através de uma autêntica, ainda que soe polêmica, instância do inconsciente coletivo da história do homem, da própria história: o transe mediúnico. No caso, o chamado “homem do Contestado”, civis e militares, pelados & peludos (os caboclos raspavam a cabeça a zero para se diferenciar dos peludos, militares e mercenários que portavam longas melenas), adolescentes e mulheres guerreiras, crianças, todos estropiados em quatro anos de guerra civil num território do tamanho do Estado de Alagoas.
Uma revolta só debelada com a entrada de quase a metade do efetivo do exército brasileiro, equipado com moderno armamento depois usado na I Guerra Mundial. Inclusive, o uso de aviões para observação e que, por conta de acidente com um deles, a missão de jogar bombas sobre os sertanejos foi abortada. Mas era, sim, o objetivo almejado pelo general Setembrino de Carvalho, comandante das tropas no Contestado, que vinha do Ceará onde, como interventor nomeado pelo presidente Hermes da Fonseca, havia esmagado sedição armada pelo padre Cícero.
Capitalismo nascente
Abertamente contrastando com Canudos (1896-1897), mesmo que em comum surjam aqui e acolá pontos de similitude, como o messianismo, a luta pela terra, um sonho de socialismo rupestre virando pesadelo, e o enfrentamento desigual e a repressão assustadora do exército da recém-criada República, os quatro anos do Contestado foram tudo isso, abrigando uma complexidade político-ideológica nunca antes vista no campo brasileiro (até a sua destruição foi mais traumática, quando não, de uma expertise cirúrgica inédita).
Complexidade essa, aliás, que permite se afirme que o capitalismo tal qual o conhecemos hoje no Brasil nasceu no Contestado. Mesmo quanto ao ideário utópico que sedimentou a revolta dos jagunços catarinenses, ali vicejou um “romântico” igualitarismo semelhante ao dos catecúmenos da nascente Cristandade, sem direito à propriedade privada, como em Canudos. A par de um conflito histórico de fronteiras entre Paraná e Santa Catarina, a modernidade da chegada ao hinterland catarinense de capitais forâneos construindo a estrada de ferro São Paulo-Rio Grande, a Brazil Railway Company (que levou à região milhares de trabalhadores de outros estados) e instalando a maior serraria da América Latina, a Lumber Colonization, todas empresas do magnata norte-americano, Percival Farqhuar, foi um dos pivôs que detonaram e alimentaram o conflito.
De papel passado, fajuto ou não, das terras recebidas do Governo próximas ao trajeto da ferrovia, e em conluio com os “coronéis” e grandes fazendeiros do Paraná e de Santa Catarina, uma milícia particular provocou a maior matança e êxodo de caboclos, posseiros, pequenos proprietários de que se tem notícia na história recente do Brasil. Nem por isso a reação dos jagunços, adverte o brazilianista, Todd Diacon, da Universidade do Tennessee, doutorado no tema, configura uma luta antiimperialista no Contestado. Simplesmente, ele reitera, porque para os rebeldes, que nem conheciam o pavilhão nacional, o “império” era o Brasil, os coronéis mancomunados com o capital estrangeiro, os militares que foram reprimi-los para proteger suas propriedades e investimentos.
Estopim da guerra
Por um instinto de sobrevivência, ao primeiro chamamento para se reunirem em torno de mitos, não demorou a surgirem na região magotes ensandecidos, desafiando a “desordem” institucional existente! Esse choque de “desordem” contra “desordem” frutificou numa inédita sangria de homens e mulheres (em torno de quinze mil civis e militares), cujas “almas sofridas e perdidas” vieram pedir socorro ao nosso filme!
Com tudo isso em ebulição, dá para fabular que, para que houvesse um estopim, bastava que a fronteira contestada entre Santa Catarina e Paraná, úbere em erva mate e madeira, fosse rompida por alguém. E em 1912, um monge de nome José Maria, vendendo terras devolutas do Paraná (Irani) para duas dezenas de caboclos catarinenses, instalou-se em cima do fio da navalha. Nem será preciso contabilizar quantos soldados e fanáticos ficaram sem sepultura após uma horrenda refrega que conflagrou não só Curitiba (PR) e Florianópolis (SC), mas o próprio presidente, marechal Hermes da Fonseca e, logicamente, o exército, que logo enxergou ali um novo Canudos. Tanto é que a repressão militar não tardou a se mobilizar e se fazer sentir com metralhadoras e canhões.
Na mesma intensidade que dentro das dezenas de cidadelas, os caboclos, antes simples crentes e pacíficos, para sobreviver, passaram a praticar apropriações de alimentos e animália, que diziam “débitas”, de comerciantes e fazendeiros da região. Ao mesmo tempo, constrangidos por chefetes fanatizados, como o já citado, “comandante” Adeodato (que, entre o exército teve o seu equivalente no capitão Potiguar, uma versão sulina do famoso coronel Moreira César, de Canudos), instalou-se um regime de terror nunca antes visto no Brasil. Um terrorismo, por sua vez, igualmente agenciado pelos chamados “vaqueanos”, asseclas do coronelato e tropa assalariada pelo exército, que não só ameaçava os seguidores que fraquejassem, como espalhou um imaginário fantasmagórico sobre seu poder de persuasão e violência que sobrevive até hoje, com os contornos tão assustadores e impensados que tivessem ocorrido entre nós.
Transe é poesia
Por aí, sem muita nitidez e tateando pelas veredas que a história oficial do Contestado escamoteia, desvirtua e se cala, arregimentei trinta médiuns ao longo de meses de contatos presenciais em sessões espíritas no teatro de operações do conflito e em Florianópolis (SC), e os transformei em “influxos condutores da linguagem” (se a expressão couber, e cabe!) do filme.
Dessa forma, “O Contestado – Restos Mortais” é agora a formalização concreta em fotogramas do que apenas ensaiei em “A Guerra dos Pelados”: o contundente poder narrativo da mediunidade, um discurso sempre cifrado, poético e atemporal, quando menos, profético e dispersivo, a assumir a condição de ogro cinematográfico introduzindo o espectador à invisibilidade da Guerra do Contestado. Para atingir essa, digamos, intimidade com os médiuns, fizemos questão (o cineasta Zeca Pires, meu diretor assistente, e eu) de jamais industriá-los sobre o que queríamos saber ou ouvir na hora da filmagem e da gravação.
Foi o suficiente para, mais uma vez, tomarmos consciência o quanto o Contestado vem sumindo na memória das pessoas, reforçado pelo fato de que nos livros didáticos, essa verdadeira guerra civil nos sertões do sul brasileiro é citada com meia dúzia de palavras, quando não inteiramente omitida sobre os grandes perrengues sociais e políticos que tumultuaram a chamada Primeira República (1889-1930). Temíamos, inclusive, que na efetivação das filmagens nossos “desejos” fossem telepaticamente “lidos” pelos médiuns, por isso nada foi pedido ou insinuado previamente. Ficamos todos, equipe e médiuns submetidos ao território do desconhecido, do mistério. E isso transparece nas quase dezessete horas de captação de imagens & sons de médiuns em transe: o inesperado, o susto, a coincidência, a descontinuidade do espaço e do tempo, a pertinência de vozes, testemunhos, grunhidos, dores, berros, risos e gargalhadas, a mais intrigante e desconcertante poesia. Cada transe, uma estrofe, um poema épico, estranha ária de uma ópera mental. Bela e, também, assustadora catarse exalando amperagem dramática e “verdade” míticas que foram conflagrando a todos, crentes e descrentes.
Segunda pele
Nessa ânsia de chegar ao âmago da invisibilidade do Contestado, foi surpreendente sentir como ela vem atracada ao real como uma segunda pele, a que está fora dos livros, dos relatos oficiais, da memória viciada tanto pelo que disseminou o vencedor quanto ao que escapou da crônica do vencido. Aliás, trata-se de um incontornável truísmo, mais uma vez comprovado: ambos mentem, vencedor e vencido, como descobri estudando o arcabouço castrense da Guerra do Paraguai (1864-1870) para o documentário, “Guerra do Brasil” nos anos setenta: onde refulgia que os aliados (Brasil, Uruguai e Argentina) inflavam suas vitórias, os paraguaios descontavam, contando o mesmo enredo, jamais reconhecendo a debâcle. Como se a guerra, o “nosso” Vietnã avant la lettre do século XIX, tivesse terminado empatada! Diriam os chineses: a verdade está mesmo no fundo do poço.
Assim, para o bem e para o mal, “A Guerra dos Pelados”, de há quatro décadas, e o inédito “O Contestado – Restos Mortais”, recém-concluído, com uma duração de 118 minutos e lançamento nacional no primeiro semestre de 2012 – ambos os filmes parece que foram feitos por dois cineastas diametralmente opostos.Não apenas quanto à narrativa e realização cinemáticas, mas em todos os sentidos: da apreensão crítica da linguagem, digamos, “imaterial” da mediunidade, que ensejou uma estética supra-real, ao sentido político-ideológico do tema; do questionamento existencial às mais pertinentes incursões filosóficas e morais. Com “O Contestado – Restos Mortais” acabo de concluir o meu melhor filme: não existe maior alegria do que esta!
O longa-metragem será exibido em cinco capitais, estreando em Curitiba e Florianópolis (19 de outubro); em seguida, Porto Alegre (26/10), Rio de Janeiro (02/11) e São Paulo (23.11).
Sylvio Back, cineasta, poeta, roteirista e escritor, autor de 37 filmes (11 longas-metragens) e de 21 livros (roteiros, poesia e ensaios); em finalização, o doc de longa, “O Universo Graciliano”; em preparo, a ficção, “A Angústia”, baseado no romance de Graciliano Ramos.
Publicado em sylvio back
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Playboy – Anos 60
Publicado em Coleção Playboy, mulheres, playboy - anos 60, Revista Playboy, women
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Original Beto Batata
Rui Werneck de Capistrano
Poemas (se você não tem)
— Cara, bom te encontrar. A gente vai lançar uma revista de poemas e pensou em você. Tem alguns prontos?
— Não.
— Que pena! Só vai entrar gente da pesada: os irmãos Prado, Josely Biscaia, Sossélla, Corona, Jacques Brand, Jamil Snege… tem um patrocínio fudido, capa quatro cores, papel cuchê. Blablablá! Tchau!
Poemas (se você tem)
— Cara, massa! Te encontrei na hora certa. Vai sair uma revista da pesada. Você tem que entrar. Sem você a coisa não tem graça. E aí: tem poemas?
— Tenho sim.
— Legal. Então me leva hoje à tarde, sem falta, que eu vou submeter ao resto da patota: são cento e vinte. Bem, só que a gente tá meio mal de grana. Cada um vai ter que entrar com uns 500 pilas. Blablablá! Topa?
Teatro (se você não tem texto)
— Ô, figura! Pô, tava até te procurando. A gente tá aí com um grupo de tiatro – só gente isperta! E tá muito a fim de montar um texto… mas, coisa nova… porruda… bem tchans! Pensamos em você, claro! Tem algum?
— Não.
— Orra, que pena! O grupo tá muito unido, todo mundo vibrando… Pintou altas granas da Lei Sarney. Dá pra fazer um troço ducaralho. Pena! Blablablá!
Teatro (se você tem texto)
— E aí: escrevendo muito? Vim atrás de você porque sei que você tem… tem né? A gente quer um texto ducacete pra montar com nosso grupo novo. Um texto beleza! Tem aí?
— Tenho.
— Tem?!
— Tenho. Tá aqui!
— Bem, mas… não pode muito longo, nem ter muitos personagens, nem ser muito político, sabe, né? Nem muito água-com-açúcar… A gente quer ensaiar alguma coisa com dois atores. A temporada é de três dias no Mini. Sei lá, acho que você não vai topar… a grana é pouca. E essa peça tua… é muito cabeça…
Música (se você não tem letra)
— Ô, meu! Tudo em cima? Na boa? Pô, soube que você fez letras pruma banda de Porto Alegre. Legal! Pô, tô muito afinzão de fazer umas músicas. Conheço uma banda: só filhinhos-de-papai. Altos instrumentos… batera importada… Que tal a gente fazer uma parceria? Tem alguma letra?
— Não.
— Puta azar! Não sou bom de letra… E os caras vão fazer um show em Sampa, abrir pro Sepultura. Grana preta! Passagem, hospedagem e tudo mais. Se você tivesse… Pena! Blablablá
Música (se você tem letra)
— Aí, gente boa! Foi bom te achar! Tomando uma, heim? Posso filar um copo? Sabe, cara, pintou um lance, tá ligado, uma banda… os caras querem música nova… estão ensaiando pra valer… Pensei em entrar nessa. Quer dizer: a gente podia entrar. Saca uma letra que eu boto música. Tem pronta?
— Tenho.
— É isso aí, ducacete! Pô, meu, em cima! Mas não sei se vai dar tempo… os caras viajam hoje à tarde pra Sampa… vão gravar uma bolacha… tinha que entregar bem antes… Mas, tem nada não! Fica pra outra. E, também, eu tô meio sem tempo…
Cartum (se você não tem)
— Quer entrar ou não quer? Pintou uma exposição de cartuns. Só cartunista novo, que tá agitando: Solda, Miran, Guinski, Cortiano… Você tem que ir nessa. Tem cartuns novos?
— Não.
— Que pena! Pô, vai sair pela Fucucu o catálogo. Depois a exposição vai pra Sampa, pro Rio e até Nova York. Tem que entregar até hoje. Pena… blablablá!
Cartum (se você tem)
— Você tem que entrar, cara! Pensamos em você. Teu traço tá legal. A revista deve sair até julho, agosto. Tem cartuns?
— Tenho uma porrada.
— Bem, mas não sei se você vai gostar… a gente tá tentando um patrocínio. Pode demorar… E cartum, cê sabe, tem que ser… tem que ver quantos vão entrar. Vai ter uma seleção… convidaram os cobras. E pintou muita gente nova. A gente se fala depois. Falô?
Textos (se você não tem)
— Vai sair uma antologia de textos de escritores curitibanos. A nova literatura paranaense. Gente de talento. Seu nome foi lembrado. Os organizadores te acham indispensável. Tem texto?
— Não.
— Mas você não pode ficar fora! Teu texto é ma-ra-vi-lho-so! E o livro vai ser distribuído no Brasil inteiro, prefácio do Paulo Francis. Capa do Poty. Dez mil exemplares. Ainda pagam cinco mil pra cada colaborador. Que pena! Blablablá.
Texto (se você tem)
— Tem texto novo? Um livro… vai sair… massa! Pediram pra te encontrar e levar um texto. Você tem que entrar. Junto com Roberto Gomes, Emiliano Pernetta, Juril Carnascialli, Flora Camargo Munhoz da Rocha, Reinoldo Aten, Moisés Paciornik, Wanderley Dias… só gente da pesada! E daí, tem texto? Levo já!
— Tenho. Mas, sabe, pensando melhor… deixe!
A melhor de Curitiba.
O cara, teu chapa, amigão de toda hora, chega e te diz, espantado — ou, melhor, fingindo espanto:
— Ô, cara, vi o livrão dos Cem Melhores Escritores de Curitiba. Saiu. Cara, não tem texto teu?! Cê não mandou? Não te pediram? Cara, você é dos bons.
— Não, nem sabia!
— Cara, pensei que você soubesse. Tem texto meu lá. Um livrão — só gente boa. Dez mil exemplares. Me deram dez. Você tinha que estar nessa.
Rui Werneck de Capistrano é escritor nas horas vagas — que são todas.
21|8|2010
Leia-se!
Rua Padre João Gonçalves, 100, Vila Madalena.
dulcineiacatadora.pedidos@gmail.com
Publicado em Cartunista Solda, leia-se!, Wilson Bueno
Com a tag alceu dispor, cartunsta solda, Don Suelda del Itararé, itararé, jaguapitã, leia-se!, nora drenalina, prof. thimpor, solda, soruda, wilson bueno
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Quem é que faz uma coisa dessas?
Qual terá sido o leitor que fez uma coisa dessas? Já vi muitas coisas em livros. Mas rasura modificando o sentido da frase, nunca tinha visto. Você já viu? Conte aí.
Rui Werneck de Capistrano é autor de Nem bobo nem nada