Se não tivesse nenhuma informação prévia sobre o presente espetáculo, poderia perfeitamente achar que o mesmo teria como foco os Pterodátilos – na grafia científica, Pterodáctilos (Pterodactylus sp.). Como todos sabemos, os Pterodátilos foram répteis voadores da ordem Pterosauria que viveram na atual África e Europa durante o Jurássico superior (cerca de 150 milhões de anos atrás). Dinossauros voadores carnívoros, provavelmente alimentavam-se de peixes e pequenos animais; tinham uma envergadura de asas reduzida (por comparação a outros Pterosauros) situada entre 50 e 75 cms, e seu gênero foi descrito em 1801 por Georges Cuvier.
Isto posto, e obviamente já sabendo que a montagem não trataria do alado monstro, ainda assim minha curiosidade permaneceu a mesma: por que será que o autor norte-americano Nicky Silver deu esse título a um de seus textos mais instigantes? Talvez nunca chegue a uma conclusão definitiva, mas tentarei ao máximo levantar uma hipótese nas linhas que se seguem. Em cartaz no Teatro das Artes, “Pterodátilos” chega à cena com direção de Felipe Hirsh e elenco formado por Marco Nanini (Artur e Ema), Mariana Lima (Grace, esposa de Artur), Álamo Facó (Todd, filho de Artur e Grace) e Felipe Abib (Tom, que logo se converte na empregada da família) – cabe ainda registrar que Ema é irmã de Todd.
Reduzido à sua essência, o enredo de “Pterodátilos” gira em torno da família composta por Artur, presidente de um banco, Grace, sua esposa alcoólatra e consumista, Todd, filho mais velho do casal que retorna à casa inesperadamente declarando-se aidético e Ema, virgem de uns 30 anos capaz de incontáveis somatizações. O agregado Tom, pretendente de Ema, acaba se convertendo, como já foi dito, na empregada.
Abordando, dentre muitos outros temas, o alcoolismo, a depravação (em múltiplos níveis), a violência, a solidão e a total incapacidade de entendimento, o texto de Nicky Silver nos coloca não exatamente diante de questões específicas de uma família bizarra e desvairada, mas a converte numa espécie de símbolo de todas as famílias, de toda a espécie humana, cujas contradições e desencontros estariam levando-a à extinção. Daí, talvez, advenha a escolha do título, ainda que, obviamente, este só possa ser encarado em seu aspecto metafórico.
Seja como for, o texto em questão é simplesmente deslumbrante, pois ao mesmo tempo em que prioriza o humor, este é sempre de natureza crítica e cáustica, o que só contribui para realçar ainda mais a pertinência dos temas abordados. Além disso, o autor constrói personagens maravilhosos e diálogos eletrizantes, estruturados quase sempre através de frases curtas. Em resumo: se o riso é uma constante, ele não deixa de conter elementos trágicos, e possivelmente talvez aqui resida o maior mérito desta obra, assinada por um dos maiores dramaturgos contemporâneos.
Com relação ao espetáculo, mais uma vez o diretor Felipe Hirsh demonstra seu invulgar talento, tanto no que diz respeito à dinâmica cênica – imprevista, criativa, plena de ousadia e, portanto, em total sintonia com os conteúdos propostos pelo autor – quanto à sua notável capacidade de extrair atuações maravilhosas de todo o elenco. Álamo Facó e Felipe Abib estão impecáveis em seus respectivos papéis, o mesmo ocorrendo com Mariana Lima. Esta, por sinal, que recentemente exibiu performance inesquecível vivendo uma autista em “A máquina de abraçar”, aqui demonstra que também pode fazer, com o mesmo brilho, uma personagem quase sempre muito engraçada. Trata-se, sem dúvida, de uma das melhores atrizes de sua geração.
Finalmente, chegamos a Marco Nanini. E aqui me vejo diante de inquietante questão: o que me restaria ainda a dizer, além de tudo que já disse ao longo dos últimos 21 anos, sobre este que é um dos maiores atores do planeta? Vasculhar, como um arqueólogo semântico, adjetivos ainda não empregados? Isso me parece pueril. Então, o que tenho a dizer sobre este ator deslumbrante, senhor absoluto de todos os recursos expressivos aos quais só têm acesso intérpretes de exceção? Vamos, pois, priorizar a simplicidade: agradeço a Marco Nanini o privilégio de mais uma vez vê-lo em cena; agradeço a Marco Nanini todos os risos que me gerou, assim como alguns momentos de perplexidade e desamparo que sua dupla criação provocou em mim. Agradeço, enfim, a Marco Nanini o fato de ele existir, de ser alguém capaz de promover encontros como este, do qual saí acreditando cada vez mais na vida e no teatro, que, como todos sabemos, são almas gêmeas e caminham de mãos dadas.
Na equipe técnica, Daniela Thomas cria uma cenografia que merece ser considerada como uma das mais brilhantes já vistas em palcos cariocas. E isto se deve, basicamente, à capacidade da artista de criar um cenário que “participa” ativamente da montagem, quase que na qualidade de mais um ator. À medida que a família vai perdendo o prumo, a cenografia ora se inclina para um lado, ora para o outro, e finalmente, quando a total desagregação já não pode mais ser evitada, partes do assoalho começam a desabar, a criar inevitáveis abismos, símbolos de túmulos em vias de serem ocupados por personagens que já estão praticamente mortos e que apenas tentam prolongar sua agonia realizando orgias sobre a campa das próprias sepulturas. Antonio Guedes responde por figurinos em total consonância com o contexto e as personalidades retratadas, cabendo a Beto Bruel assinar uma iluminação que contribui decisivamente para a enfatização dos múltiplos climas emocionais em jogo.
Pterodátilos – Texto de Nicky Silver. Direção de Felipe Hirsh. Com Marco Nanini, Mariana Lima, Álamo Facó e Felipe Abib. Teatro das Artes. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 20h.
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