O mundo parecia estar parado. O tempo devia ter ido dar uma volta de pedalim no laguinho do parque. O Sol tomava refresco à sombra de uma árvore. Ali, na minha frente, o mecânico eviscerava o carro com mãos calejadas e sujas. No seu rosto, nenhuma denúncia de compaixão ou piedade. Retirava órgãos dilacerados e pingando sangue sem nenhuma demonstração emocional. Porcas, unhas, arruelas e dentes. Apenas o esforço salientava as veias do pescoço e logo saltava fora um amontoado de ferro com terminações nervosas frementes. Não sei o que eu mesmo sentia. Olhei em volta e nada se mexia.
O ar parou de respirar e dois latidos grudaram na parede cheia de fotos sensuais. O barulho da ferramenta que caiu nem repercutiu. Era ferro contra cimento em luta desigual. Era preciso jogar, com urgência, o pensamento para bem longe. Nem um livro aberto daria conta da paradeira desértica. Onde foi que eu li? Era livro propaganda. Era dia de chuva. Era tarde de poucos jobs. O autor foi lá no fundo e disse que uma boa coisa é visitar um ferro-velho, um cemitério de automóveis. Ali estão enferrujando os mais caros sonhos, os mais ardentes desejos de consumo de tempos passados.
Ali, tortos, sujos, com insetos morando no que outrora fora conforto, prazer, velocidade, ilusão de liberdade. E as plantas daninhas, desrespeitando o santuário, brotam fartamente. A lataria tantas vezes lavada e encerada não reflete um raio de Sol sequer. As amadas rodas de liga leve, onde andarão? Em que mundo, em que estrelas brilharão? Tantos beijos no escuro do drive-in, qual novidade-fantasma bebeu? As músicas, em milhares de decibéis, em qual beco sem eco se perderam? Dei tchau para o mecânico e, sem olhar para trás, saí meio seco. O tanque de combustível emocional já na reserva.
O acelerador da vida prestes a ter o cabo arrebentado pelo pisar fundo. Até a vista!
O buda passou distraído Na minha calçada Falando ao celular Sabe-se lá com quem É meu ponto aquele Meditar, isolar toda imagem e fluxo de pensamento E só Coisa pouca Quando chegava lá na casa de praia Era tanto vento e sol A gente corria de biquíni Uma vez teve aquele golfinho morto O mar devolveu Um fim de tarde e a gente ficou olhando Ali, onde aquela menina morreu afogada No dia do aniversário Os macacos loucos se agitando dentro da mente Nesses galhos vários galhos O buda, pois bem: o buda Distraído na calçada lá de casa Falando, falando, falando Eu cheguei nele com tudo Passa essa porra desse celular, seu budinha do caralho Passa agora! Bora! Bora! Bora! Desliga essa porra aí Era um buda jovem Estava lá no fundo dos olhos Por trás daquela veste de garota distraída falando ao celular Falando, falando, falando Encontrei ele na calçada de casa Aí, peguei e matei
O cerco se aperta. O pai do coronel Mauro Cid, general Mauro César Lourena Cid, fez corretagem das joias sauditas em Miami. Já precificadas – a tal “cotação sem mal nenhum” de Bolsonaro -, teriam gerado lucro de R$ 1 milhão aos vendedores, R$ 600 mil a parte de Jair Bolsonaro, que as recebeu como presente ao governo brasileiro. O general é amigo e foi colega de Jair Bolsonaro desde a escola militar. Segundo o Uol, o Exército acompanha com “preocupação” o desenrolar das investigações sobre a família Cid. Essa preocupação significa receio de manchar a corporação. Essa mancha não é gratuita e é a prova de fogo da instituição.
A mancha vem da tinta espalhada por Jair Bolsonaro e à qual se submeteram muitos militares que aderiram ao Mito desde a campanha, a começar pelo general Villas Bôas, que pressionou o STF a frustrar a candidatura de Lula em 2018, até o ministro da Defesa, general Paulo César Nogueira de Oliveira, que tentou obrigar o presidente do TSE a aceitar a perícia das urnas eletrônicas por técnicos do Exército – que deu em nada, mas mesmo assim sem obter o reconhecimento da lisura do equipamento pelo general. Sem contar o aliciamento de altas patentes da reserva para cargos no governo. Bolsonaro fez o que pôde para cooptar os militares. Um milagre que não realizou.
Foi um milagre acidental, só possível pela incapacidade de Jair Bolsonaro, e pela valiosa, vigilante e corajosa ação do ministro Alexandre de Moraes, apoiado por seus pares do STF, que o Brasil não descambou para – mais – uma ditadura. Sim, porque Bolsonaro não queria o poder no estilo Getúlio Vargas ou Ernesto Geisel. Ele queria o poder apenas para ganhar dinheiro para si mesmo e os filhos, mais as sobras para seus cúmplices, os corretores de joias sauditas em Miami. O preço da nossa liberdade, até para o gado que muge para o Mito, foi a eterna vigilância do STF, que resgatou sua dívida histórica pela complacência com a ditadura militar.
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