Occam!

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Nina North © Zishy

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Laura e Joice contra o vento

Dona Laura mudou-se de novo; saiu uma vez porque o apartamento era frio, ficou um tempo fora e não sossegou até comprar o apartamento quente aqui mesmo. Morar em Curitiba requer a sorte de cair no lado norte ou no lado sul; no primeiro a casa é quente, no outro é fria. Pior que o curitibano, como o brasileiro em geral, não se orienta pelos pontos cardeais, como a gente vê qualquer imbecil fazendo em filme americano. O norte e o sul são leros de corretor para empurrar imóveis – que, melhores que sejam, dia mais dia terão o espigão a tirar-lhes o sol, pois Curitiba tem dono, os especuladores imobiliários e os donos dos ônibus que contratam prefeitos e vereadores para o serviço sujo. Dona Laura caiu nessa e veio para cá, saiu e voltou. Uma mulher, diziam, de mal com a vida, solitária, azeda, barraqueira; para mim um doce de pessoa, interessante e engraçada em estado de repouso e melhor ainda quando adotou o pincher, substituto da filha que se mandou para a Bélgica.

Venci a prevenção contra Guarapuava graças a dona Laura. A prevenção vinha da universidade com os cascas grossas barulhentos do centro acadêmico. Dona Laura, casca grossa fascinante, conquistou-me no aparte durante a reunião do condomínio: “não se meta comigo que sou de Guarapuava; lá as mulheres mijam em pé contra o vento e não molham as canelas”. Muitas vezes compartilhei o elevador com dona Laura. Um dia ela me peitou com a pergunta: “por que você fica olhando meus tornozelos?” Inventei uma desculpa, estava curioso com o efeito ventania. Tenho medo de cascas grossas, sou mais a hipocrisia curitibana; saí assim de dentro de minha mãe, ao contrário do presidente Lula, que nasceu valente e destemido, cangaceiro, peixeira na mão petista que se abre nos acordos com o Centrão. Vim de Ponta Grossa, filho de mãe meiga, delicada. Em Ponta Grossa, casca grossa como dona Laura só tem uma: Joice Hasselmann, que mijou contra o vento e saiu ensopada.

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© Jan Saudek

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Um que eu tenho

Capa do vinil original, 1969

Band of Gypsys é o álbum fantástico gravado ao vivo desse trio inesquecível de Jimi Hendrix, ao lado do baixista Billy Cox e do baterista Buddy Miles. São nove faixas em que a lenda da guitarra mostra o melhor de seu estilo, incluindo “Who Knows”, “Machine Gun” e “We Gotta Live Together”, alguns dos destaques. Shows no Year’s Eve, 1969-70 em Fillmore East, Nova Yorque. CD Polydor.

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De sonho e reza-braba

Pesquisas recentes indicaram os sonhos como eficazes antídotos contra o estresse nosso de cada dia. Não sei em que medida isto ocorra. Estresse não me parece coisa que se cure com sonhos. Temos visto, no áspero cotidiano, que, não sendo da aérea matéria deles, o estresse é bem mais um pesadelo da vigília e de sua fatigada astúcia.

Não me canso de lembrar aqui minhas origens e, com elas, o resgate da infância primordial onde a vida mesma era sonho e punha todas as coisas encantadas. Minha avó cabocla, por exemplo, Maria Rosa Custódia de Senes, esta tinha a ciência dos sonhos na ponta da língua. Feito um talismã.

Sonhar com alguém chorando, não hesitava vaticinar: vinha ali dinheiro ou alguma mulher da família estava prestes a parir. Já sonhar com viagens tinha uma nota aziaga — morte certa de compadres ou amigos. Sonhar com um passarinho, era casamento; sonhar com muitos passarinhos (ouviu, Rogério Dias?), anunciava grandes colheitas.

O rol de significados e significâncias, a partir do sonho, era, para a avó, quase inesgotável. Sonhar com chuva, o prolongamento do estio na roça seca; sonhar com alguém voando ou caindo do cavalo, não dava outra — chegariam parentes há muito ausentes.

Também o saber, digamos, erudito, nos reserva coisas prodigiosas sobre os sonhos. Veja o leitor, esta, dos aedos gregos, bem mais interessante que as recentes descobertas da ciência moderna: a prova, entre outras, de que o Inferno existe — incontestável nos demoníacos pesadelos vividos pela alma quando em sono profundo.

Por falar em alma, impossível esquecer o famoso soporífero da planta mandrágora, que, entre os caldeus, causava sono idêntico ao da morte…

Tão ou mais sábia, repito, era a velha Maria Custódia, rezadeira, benzedeira, “costurava” carne rasgada, além de capaz das mais incríveis simpatias para evitar “mau-olhado” que, aquele tempo, tinha outro nome — “quebranto”. Sobretudo criança que não fosse protegida, adoecia gravemente.

Mas pior que mau-olhado, só picada de cobra e, contra ela, a avó tinha um antídoto feroz: “reza-braba”. Verdadeiros mantras caboclos que, incompreensíveis ao comum dos mortais, apenas ela sabia rezar, secretos na mente, secretamente aprendidos de cor.

Dona Maria Rosa Custódia de Senes faleceu em 1967, varada em anos, e descansa, ao lado de minha mãe, no Cemitério de Santa Cândida. Convivi em sua (doce) companhia a primeira década e meia de minha pobre existência e nunca a ouvi falar em estresse ou que sonho curasse estresse. E olha que de sonho e “reza-braba” ela entendia; e não entendia pouco.

O Estado do Paraná, 16 de março de 2008

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A descomunhão evangélica

Os evangélicos da bancada PL estão irritados com seus colegas evangélicos do PSD e do Republicanos, a quem acusam de ter se aproveitado da onda bolsonarista e, agora, ceder às “tentações diabólicas”. O diabo, no caso, é Lula.

Um dos principais alvo da maledicência evangélica do PL é o deputado Silas Câmara (REP-AM), eleito coordenador da Frente Evangélica.

No culto de sua posse estavam presentes três ministros de Lula: Márcio Macedo (Secretaria-Geral da Presidência), Jorge Messias (Advocacia-Geral da União) e Márcio França (Portos e Aeroportos).

Os evangélicos do PL acham que está claro que o Republicanos nem se estabeleceu no governo e já se rendeu a Baal, um deus inimigo do Deus israelense.

O irônico é que o culto de posse se chamava a Santa Ceia de Fé, que basicamente expressa a comunhão entre os irmãos. Mas se tornou, por conta da presença do governo e da aproximação de seus membros, motivo de dissensão. Foi comparado à Santa Ceia, quando se juntaram os discípulos e o traidor de Jesus Cristo.

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Alcy, o cartunista e a censura

Rio – O poeta Ferreira Gullar, numa conversa com Jaguar, disse que Murilo Felisberto, editor do “Jornal da Tarde”, de São Paulo, estava precisando de um cartunista.  Jaguar escreveu um bilhete para o editor do jornal paulista e mandou o menino procurá-lo. Assim começava a carreira profissional do cartunista Alcy, no final dos anos 60. 

Alcy Linares Deamo,  ou simplesmente Alcy, como ele assina, nasceu em 13 de julho de 1943, em Nogueira, interior de São Paulo e foi criado na capital paulista. Ainda adolescente, deu os primeiros passos no humor gráfico nas páginas do “Pif-Paf”, de Millôr Fernandes.

Já como profissional, trabalhou nos jornais “Pasquim”, “Diário Popular”, “Estado de São Paulo”, “Folha de São Paulo”, “Jornal do Brasil”, “Movimento”, “Versus” e nas revistas “Veja”, “Isto É”, “Exame” e “Senhor”.

Foi um dos cartunistas mais atuantes no combate a censura e a Ditadura Militar. Militante, suas armas eram a coragem, o lápis, o papel e uma ideia na cabeça com as quais criava cartuns e charges demolidoras.

Quando chegou ao Rio, fez parte da “nova geração” do “Pasquim”. Era época da Ditadura Militar. Havia um clima de terror no ar. O medo se instalara e havia sempre a ameaça de alguém ser preso ou sumir.

Alcy conta que o Ziraldo dava aos cartunistas novos – Alcy, Nani, Reinaldo, Hubert… – um cartão com o nome e o telefone de um advogado para ligarem caso algum deles sumissem.

A censura ferrenha e implacável obrigava os cartunistas e jornalista a produzirem o dobro do material necessário para fechar uma edição do jornal. A maior parte do que era produzido, era censurado. “A gente desenhava para caramba, no sentido de quantidade, para encher o saco e dar mais trabalho para os censores”, lembra o cartunista.

Como ilustrador, realizou capas para os livros dos escritores Luis Fernando Veríssimo, Carlos Eduardo Novaes e Stanislaw Ponte Preta. É autor de vários livros, entre eles: “O dia em que eu fiquei sabendo”, “Papai e mamãe estão se separando” e “Meio dia macaco assobia”. Em 1974, fez parte, junto com Millôr, Ziraldo, Zélio, Fortuna, Jaguar e Ciça do grupo que apoiou a criação do Salão Internacional de Humor de Piracicaba que se tornaria referência mundial no desenho de humor.

Desde que saiu do jornal “Lance”, no final dos anos 90, Alcy vem se dedicando a ilustrações para livros infantis. “São dois movimentos. Um é meu, o outro é da realidade. Fui ficando de fora do meio e, quando vi, estava fazendo mais para editora do que para jornal”, disse.

Recentemente, Alcy ganhou uma retrospectiva com alguns de seus cartuns feitos para a imprensa e vetados pelos censores da época.

O livro “Vida de Artista”, lançado pelas editoras Jacarandá e Devir, é um apanhado de seu trabalho feito com graça inteligente e de poucas palavras, numa época de censura e ditadura, publicados entre 1970 e 1984.

Com prefácio do jornalista Gonçalo Junior e orelhas dos irmãos Chico e Paulo Caruso, o livro reúne charges e cartuns sobre temas diversos publicados entre 1970 e 1984, período em que colaborou com os mais importantes veículos da imprensa brasileira.

“É o único cartunista profissional que eu conheço”, crava Chico Caruso.

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5º Andar ou Quinto Andar?

© Lina Faria

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Você ganhou o Prêmio Goncourt (França)

Certamente você já ouviu falar do prêmio acima. É distribuído a escritores, na França. Mas, de onde surgiu, sabe? Os irmãos Goncourt têm uma longa história. Os dois, Edmond e Jules (1830 – 1868), segundo a biografia, decidiram, numa certa época da vida, que seriam ‘um’ e passaram a se chamar Irmãos Goncourt. E que seriam lembrados pra sempre como ‘literatos’. No fim da vida, Edmond (1822 – 1897) deixou tudo o que tinha para uma fundação que se destinava a premiar livros pelos tempos afora. E conseguiu. Nasceu o Prêmio Goncourt. Veja uma passagem que tirei de um ensaio do W. S. Maugham.

“(…) Em 1851 escreveram (os irmãos) primeiro romance. Chamava-se Em 18..., e o publicaram a suas expensas. Foram impressos mil exemplares e vendidos 60. André Billy qualifica-o de artificial, obscuro, pretensioso e incoerente. Parece ter-lhes ocorrido, então, que podiam escrever um livro meio histórico, meio frívolo, acerca do século XVIII. Eram laboriosos e, por volta de 1854, haviam terminado uma obra de quase quinhentas páginas, à qual deram o título de História da Sociedade Francesa Durante a Revolução. Imprimiram-na ainda a própria custa. Era costume daquele tempo que os autores se empenhassem pela publicação de comentários sobre seus livros e, assim, os dois irmãos visitavam os críticos ou deixavam seus cartões nas casas deles, remetendo-lhes o livro. O resultado não foi satisfatório e imediatamente se puseram a trabalhar noutra obra, de quatrocentas e cinquenta páginas, sobre a sociedade francesa no Diretório. Os críticos não tomaram conhecimento dela. Inabaláveis, contudo, compuseram em 1856 uma obra em dois volumes intitulada Retratos Íntimos do Século XVIII. Venderam-na a um editor por trezentos francos. (…) Em 1858 escreveram uma biografia de Maria Antonieta e, pela primeira vez, alcançaram algo parecido com sucesso. (…)”

Com todo o empenho dos irmãos, nasceu o Prêmio Goncourt. O que acho interessante é que Somerset Maugham não viveu pra ver que hoje é igualzinho: os pobres autores pagam pra publicar e correm atrás de jornais para conseguir comentários. E ainda levam pau da crítica pela ousadia de publicar. Coisa triste, né?

*Rui Werneck de Capistrano não está nem aí.

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Esperando Godot. Em algum cortiço do centro velho. © Lee Swain

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O censor em mim saúda o censor em você

Basta um erro ou mesmo um deslize para que uma pessoa seja massacrada por milhões de outras

Quase não escrevi este texto. Quando me ocorreu colocá-lo no papel, uma vozinha esganiçada, que escuto desde criança, disse: vai ficar uma merda. Outra voz, mais grave, emendou: assunto batido. Uma terceira: que nada, assunto bacana. Uma última: vai que tá ótimo.

Gosto do nome que o povo tolteca usava para designar esse conjunto de vozes na nossa cabeça: mitote. Condição constante da mente humana, essa polifonia do ego pode se tornar enlouquecedora nos momentos que as vozes negativas se sobrepõem, em número e estridência, às incentivadoras.

Levei décadas de terapia para equilibrar o meu coro. Há alguns meses, sofri um linchamento por parte da extrema direita e meus barítonos da autocensura, que andavam sumidos, voltaram a falar. O volume logo baixou —certas vozes internas não podem ser levadas a sério— mas, desde então, venho pensando na natureza desse fenômeno pernicioso e no quanto isso tem afetado a sociedade como um todo.

Dando aulas de escrita criativa, eu já vinha percebendo. Professora, será que posso escrever sobre esse assunto? Tudo bem fazer essa piada? Será que vai pegar mal eu falar disso sendo homem? Se isso é o que os alunos me perguntam, depois de pensar e levantar a mão, imagine o que se passa por aqueles mitotes.

Claro que um certo cuidado é bem-vindo, mas não o estado de paranoia em que o ambiente digital nos colocou. O mundo, desde que é mundo, é controlado por tribunais tribais, onde o linchamento, físico ou moral, sempre existiu, mesmo depois do surgimento da justiça. A novidade está na escala que isso vem ganhando. Se antes era circunscrito a uma comunidade, agora é a toda a internet. Basta um erro, uma calúnia ou mesmo um deslize para que uma pessoa seja massacrada por milhões de outras. Às vezes por um país inteiro. Ou parte do mundo. O resultado disso é óbvio: as pessoas estão com medo. E o medo aumenta o volume do nosso censor.

É preciso admitir que o censor tem suas utilidades. Não fosse ele e sairíamos apertando as primeiras nádegas gostosas que vemos pela frente. Ou diríamos para o sorumbático vizinho: como você anda acabado ultimamente. O problema é quando essa voz cresce demais, a ponto de se tornar única, fazendo do censor o autocrata do mitote. E a autocracia, no governo de um país ou de uma mente, é um inferno.

No caso dos artistas —aqui falo pela minha categoria, como escritora—, o censor no comando paralisa o nascimento de qualquer ideia, que morre sem nem tingir o papel. Como vamos produzir arte com tanto medo de errar?

Em um texto recente, Chimamanda Ngozi Adichie diz que “nenhuma empreitada humana requer tanta liberdade quanto a criatividade. Para criar, é necessário que a mente possa vagar a esmo, ir a nenhum lugar, a qualquer lugar, a todo lugar. É desse ondular que surge a arte”. Vou além, dizendo que não só a arte, mas diversas soluções para questões cotidianas e também para grandes questões, como essa mesma, da autocensura, pela qual estamos passando.

O censor que habita em mim convida o censor que habita em você para dar um tempo para a cabeça. Precisamos de liberdade para viver com plenitude e para enfrentar esses tempos.

Publicado em Giovana Madalosso - Folha de São Paulo | Deixar um comentário
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Grillo

© Oscar Grillo

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