Nesta entrevista feita após ter completado 60 anos, escritor paranaense fala de sua obra, que pode ser lida por crianças e adultos, do ponto de vista da infância.
Há pouco mais de dois meses, no dia 13 de março, o escritor Wilson Bueno completou 60 anos. Na entrevista que se segue, ele fala de sua obra do ponto de vista da infância, “estado do ser” que acompanha a sua escrita ao longo de toda sua carreira. Wilson Bueno é um daqueles escritores que, como diz Julio Cortázar, “têm consciência que a sua inteligência lhe fabrica uma visão tolerável porém incompleta do mundo”, razão pela qual ele não deixa que a vida o instale “por inteiro na aparência, concretizando-a em torno dele e vestindo-a de definições, funções e valores.”
Bueno é, como todo poeta, um estranhado, basta citar a linhagem à qual ele pertence: Lewis Carroll, Edward Lear, Alfred Jarry… Em outras palavras, as surpresas e as aflições da primeira idade ainda o atingem. A essa situação, Wilson Bueno reage poeticamente, criando textos que deleitam leitores de todas as idades. É a respeito do “estado de infância” que acompanha a sua obra, a sua escritura e, certamente, também seus leitores, crianças e adultos, que Wilson Bueno nos fala nesta entrevista.
Pergunta – Embora Os Chuvosos tenha sido escrito para um público específico, as crianças, tanto ele quanto Jardim Zoológico (com a estória de bichos estranhos e até mesmo do ypsilone, que volta, agora, ao nosso alfabeto) e Cachorros do Céu (fábulas humoradas e com uma moral bem contemporânea) são livros, parece-me, para leitores de todas as idades. Você já refletiu sobre esse viés da sua obra, que atinge crianças e adultos? Outro livro como Os Chuvosos está em seus planos?
Wilson Bueno – Eu nunca entendi, te confesso, histórias destinadas a uma específica faixa etária de leitor, direcionada… Leitor, apaixonado, diga-se de passagem, de Lewis Carroll, desde que alfabetizado, e também dos cordéis “maravilhosos”, a literatura sempre me pareceu isso. Uma coisa mágica, encantada, para além de toda “formação”, “conhecimento”, “saberes”, “erudições”. Por isso não entendo os romanções que proliferam por aí, uma prosa anódina no mais das vezes destinada a comover, em vários sentidos, executivos enfastiados. Entreter os tediosos fins de semana, com chuva, dessa gente… Literatura, pra mim, é bruxedo, feitiçaria. Nesse sentido sou borgiano até a última raiz do cabelo. Aprendi a contar histórias com minha saudosa e adorável mãe, recentemente falecida.
Ela se alfabetizou aos 60 anos, bugra, cabocla do fundo do sertão paranaense, mas tinha uma habilidade e uma magia para narrar absolutamente singulares. Não sem razão, Cachorros do Céu é dedicado a ela… Também minha avó materna, além de parteira no sertão profundo, curandeira, benzedeira, rezadeira, índia velha, fazia nascer de inimagináveis lugares histórias extraordinárias – que iam dos bichos do mato aos bichos de seus bosques imaginários. Talvez proceda daí este escrever para públicos de zero a cem, o que é bem mais amplo, em vários sentidos, convenhamos… E depois tem que Carroll é a maior lição… Temos aí, você sabe, inédita ainda, a ser publicada brevemente por todas as “cartoneras” da América Latina, e já vertida ao inglês de Nova York, onde será apresentada num encontro internacional, nosso O Gato Peludo e o Rato-de-Sobretudo, uma antiestória rimada em sonhos… Penso seja a sucessora de Os Chuvosos. Mas acho que minhas incursões ao universo infantil – estrito senso – se encerram com ela.
Pergunta – Uma característica que chama a atenção nos seus textos é a mudança de estilo, uma inquietação, parece-me, diante da língua errante, que precisa ser reinventada, renovada a cada instante. Neste aspecto, a sua obra é “infantil”, no sentido dado ao termo pelo filósofo francês Jean-François Lyotard e pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, por exemplo, já que, constantemente, você reinventa o seu conceito e dá nomes novos às coisas, ou recorre a um novo estilo. Parece-me, por isso, que a magia (numa alusão à teoria de Agamben) da sua obra reside no fato de você não acreditar que ela tenha um destino específico e, desse modo, você a refaz o tempo todo e a deixa aberta para leitores de todas as faixas etárias. Você poderia falar sobre essa sua inquietude perante a linguagem?
Bueno – Brinco sempre dizendo que face ao sucesso de recepção de Mar Paraguayo, andando hoje aí em vários países, objeto de teses de mestrado e doutorado em centros de referência da vida universitária, e com leitores apaixonados em vários sentidos, eu poderia fazer Mar Paraguayo-2, Mar Paraguayo-3, 4, 5, até ele virar aquele “horror-movie”, Sexta-Feira 13, que, se não estou enganado, já está em sua oitava versão… (na verdade, na 12ª). Eu quero sempre o inusitado, embora não haja nada de novo sob o Sol, como nos ensina sabiamente o Eclesiaste… Mas a literatura é de uma amplidão inimaginável, inesgotável.
De todas as artes. a que me parece mais poderosa no sentido da ampliação do imaginário. Em respeito a essa “natureza”, que é dela a sua maior marca, acho, a rigor, que nada mais faço do que honrar isso, ao lançar mão dessas possibilidades… Aí a incursão, a cada novo livro, por sendas, caminhos, bifurcações, atalhos, alagadiços… Costumo dizer que sou um pequeno buscador das tardes (melancólicas) da floresta… Se chego lá, aí já não é mais comigo, mas com quem se interessar possa por onde andou mi corazón perseguidor… Sim, você tem toda razão: sou um reescritor por excelência, tanto pela artesania obsessivo-flaubertiana do meu processo de criação propriamente dito quanto pelo reandar caminhos já andados movido por novos pés e quiçá, outros olhares. Reolho, reescuto, releio as coisas, poderia, também dizer, em ampliação da resposta à sua pergunta…
Pergunta – No caso dos textos para crianças, espera-se que eles tenham moral edificante. Os Chuvosos, por exemplo, narra, quase em tom enciclopédico, a vida de uma família de pingos de chuva até a sua transformação em “múltiplos gasosos”. Não há aí uma moral explícita. Aliás, já dizia Walter Benjamin que é uma bobagem achar que as crianças gostam das fábulas unicamente por sua moral. Porém, a despeito disso, só uns poucos escritores “ousam” quebrar as expectativas dos pais e da escola, a maioria dos livros não se afasta dos desfechos morais e edificantes. Como você vê a literatura infanto-juvenil brasileira hoje?
Bueno – Perdoe-me, mas com as altas e honrosas exceções de praxe, e bem ralas, acho que não temos uma literatura infanto-juvenil digna desse nome. Como é a faixa etária em que a venda do livro se torna mais fácil, os meninos do Brasil, no geral, estão muito mal-servidos. Escrevem cobras e lagartos movidos apenas pela sanha da grana que continua a destruir coisas belas… Sempre moralizantes, edificantes, numa disposição de ajudar a ensinar o certo e o errado que, olha, me dá engulhos… Cachorros do Céu, além de outros coisas, também é uma resposta, digamos, “política”, a esta pasmaceira, herdeira dos edificantes La Fontaine da vida…
Eu adoro La Fontaine, porque é um fabulista fabuloso, mas tiro um sarro danado dele, chamando-o sempre de Dr. La Fontaine… Não perdoo, até hoje, ele ter punido a cigarra daquela forma… Curioso, menino atrevido, criado no sertão profundo até os sete anos, a ter, como bichos de estimação, coatis e macaquinhos, quando não filhotes de jaguatirica, feito gatinhos, embora estes já nasçam marcados por uma ferocidade absurda, logo que alfabetizado em Curitiba me contaram na escola a fábula da Cigarra e da Formiga… Fiquei furioso com esta última ao se negar a dar abrigo a quem lhe embalara os dias de trabalho sob a encantada maravilha dos sons mais lindos… Você sabia que o Braguinha, o compositor popular, faz uma chacota ao Dr. La Fontaine que acho antológica… Você a conhece? A formiga se dispõe a um autocrítica hilária: “Eu acho que tem razão,/ minha cigarra querida./ Vivo juntando mil coisas / e desperdiçando a vida”…
Pergunta – Ainda a propósito da moralidade nos livros, seus textos muitas vezes beiram o nonsense vitoriano, especialmente o de Edward Lear, autor que até hoje associamos ao universo infantil. Penso na estória dos ypsilones de Jardim Zoológico, esses “monstrículos magros e bem ingênuos” que, depois da chuva, correm “uns atrás dos outros, inocentes, aos vivas e urras, as mínimas perninhas sustentando os desproporcionais pescoços”, ou na fábula O Sapo e o Sonho, de Cachorros do Céu, cujo final remete circularmente ao começo da estória, bem ao estilo dos limeriques de Lear. O nonsense, enquanto crítica às regras sociais que nos são impostas, inclui claramente uma reflexão. Seus textos são também narrativas de resistência, textos políticos?
Bueno – Sim, todos, sem exceção, ou têm a pretensão de o serem… Penso que um exemplo mais à mão é o meu romance Amar-te a ti nem sei se com carícias. Um decassílabo perfeito para uma nação imperfeita, no dizer do crítico Marcelo Pen, da Folha de S.Paulo. Prosa de duas faces: ao mesmo tempo em que homenageia a bela e encantada última Flor do Lácio, num português trabalhado no que tem de mais castiço, em sua pureza mais essencial, gozo e tiro o maior sarro da retórica brasílica, a retórica parlamentar, vigente até hoje, a retórica judiciária, a retórica da vida burocrática, bacharelesca, no amplo sentido, data vênia (risos), em que congelam o nosso idioma… Com Mar Paraguayo procuro dar uma resposta (política, claro) ao histórico isolamento das línguas do continente, além de “borrar” todas as fronteiras; e por aí afora… Digo, e assumo: sou um guevarista hasta la derradera ternura… Não confundir com o nefasto “fidelismo” que fez de Cuba uma ilha stalinista, uma ditadura cruel e policialesca… Mas, sim, a utopia do Che do mundo como uma só ilha de concórdia e desassombrado amor… Ninguém vive sem utopia… A minha, agora, é essa, eu, que participei da resistência à asquerosa ditadura militar brasileira – a utopia de um guevarismo terno e eterno…
Pergunta – Não poderia deixar de perguntar sobre o movimento Portunhol Selvagem, encabeçado hoje pelo poeta Douglas Diegues, mas que já está, como Diegues costuma afirmar, em Mar Paraguayo. Como você vê esse movimento, em plena era de reforma ortográfica do português e da “simplificação” da escrita?
Bueno – Diz Néstor Perlongher (1949-1992), o poeta maior de nuestra América, no antológico prólogo de Mar Paraguayo, que eu inventei o portunhol… Agora, o portunhol selvagem de Douglas Diegues, digno de todos os meus respeitos e admiração, é “salvaje” numa visada amplísssima… Fico feliz de que Diegues leve avante essa língua errante, selvática na melhor equivalência do termo… Tenho, inédito (e é primeira vez que revelo isso de público), um trabalho que me leva à pretensão mais desavergonhada de considerá-lo o meu Sagarana portunhólico, o livro Novêlas Marafas, nos arquivos da editora Planeta, para ser lançado, assim que possível. São quatro novelas e três poemas-em prosa, uma delas, Mascate, com o melhor árabe da fronteira, num mix de guarani-árabe-português-espanhol-portunhol radicalizado. Aquilo ali, já me disse alguém, sugere uma língua de ETs, ainda que, o que não deixa de ser curioso, facilmente compreensível dentro do universo vocabular luso-hispânico… Mas é pra complicar mesmo, em oposição ao simplismo naturalista-burocrático da prosa brasileira dita urbana de hoje em dia e que não passa de um amontoado vulgar de palavrões e “franquezas” dissolutas, sem sequer a porno-poesia de um Henry Miller, por exemplo… O livro tem ainda, além da já citada Mascate, mais três novelas em portunhol mesclado de guarani, ao modo de Mar Paraguayo, e três poemas em prosa, exclusivamente em portunhol, integrados, óbvio, ao “espírito” do conjunto das “novêlas”. No verlas, no vê-las, não vê-las, velar, novelar, velar, revelar… velar, revelar… E marafas, por supuesto…
Diário Catarinense. Por Dirce Waltrick do Amarante, Doutora em literatura pela UFSC, ensaísta e tradutora de Ionesco e Joyce. Co-edita o site de arte e cultura www.centopeia.