Como dizia o enchedor de ampulheta diante da duna do dia: nem tudo é interessante. Não, não é. Mas pode-se falar de coisas desinteressantes com palavras inolvidáveis, que soem inesquecíveis. Ou por abordagens interessantes, ou de formas in-te-res-san-tes. Truque eficaz é repetir o tema central após dois pontos: o tema central ganha em expectativa. Também estacar o assunto.
Devagar. Vezes várias. Paulatinamente. De modo que a fluência afaste o desinteresse de quem lê. Se não surte efeito, sabe o que se faz nessa hora? Uma pergunta. É interessantíssimo como amplia o grau de atenção, sobretudo se precedido de superlativo e sucedido de um ponto de exclamação! Interessantemente aplicados, até advérbios no meio de uma frase iniciada com um deles, funcionam.
Se estiver faltando impacto, use a palavra impacto, mas com impacto. Assim se vai construindo, oração após oração, um bloco que começou do nada, criou aqui e ali zonas de fixação e mesmo sem climax mantém o clima. Pois os interessados querem porque querem avançar, atingir o ponto final, eles sabem que enquanto a ele não chegam nem tudo está perdido, raciocinam. A essa altura, em poucas dezenas de linhas, algumas centenas de palavras, mais ou menos um milhar de letras, o leitor reconhece no autor um interesseiro. Ele escreve para tentar cativar. Pretende seduzir pela indução. Tecla frases curtas.
Vocábulos soltos. Livres. Simples. Plurais. Os argumentos finais se aproximam. O texto ameaça parar, porém, após três virgulas, prossegue. Novo trecho, novo ânimo, novo impulso; o poder de um único e repetitivo adjetivo! O foco de interesse, que não definhou porque não se definiu, reaparece (sugerido entre parênteses) para insinuar uma vitória textual. Interessadíssimo, o leitor pressente. A conclusão vem aí. Afinal, se a ausência de assunto já preencheu uma lacuna inexistente, nada mais há a dizer. Como diria o enchedor de ampulheta: analisada de grão em grão, até a duna coaduna. Ponto final.
Hoje, acordei sem vontade de falar de política, do celerado Bolsonaro, do viageiro Lula ou do medíocre camundongo do Iguaçu. Talvez seja efeito da morte da roqueira Rita Lee, a quem eu admirava não apenas pela atividade musical, mas por sua atuação como talentosa e corajosa rebelde, inconformada com o mundo em que vivemos.
Então, para não deixar na mão mestre Zé Beto e os oito leitores que ainda me restam, vou repetir uma história aqui já contada. Que tal a do tio Tonico? Todo mundo tem um tio Tonico na família, sua história é de utilidade pública e, embora trágica, oferece alguma graça. Foi-me mandada pelo bom amigo Renato Mazânek, desconheço o autor, mas desconfio que seja médico, por motivo óbvios.
Tio Tônico era uma pessoa bem de saúde. Não tinha dores, alimentava-se bem, dormia bem, dava as suas caminhadas; coração, pulmão, fígado, rins, estômago, intestinos e cabeça tudo nos trinques. Mas estava para fazer 70 anos. Foi quando a mulher, tia Marocas, por sugestão da filha Totinha decidiu:
– Tonico, está na hora de você fazer um check-up com o médico.
– Para quê, Marocas? Estou me sentindo bem – argumentou Tonico.
– Porque a prevenção deve ser feita agora, quando você ainda se sente jovem – insistiu a mulher.
Então tio Tonico foi ver um médico. Este, sabiamente, mandou-o fazer testes e análises de tudo o que poderia ser feito e que o plano de saúde cobrisse.
Duas semanas mais tarde, com os exames prontos, o médico disse-lhe que os resultados estavam muito bons, mas algumas coisas podiam melhorar.
Então receitou: comprimidos Atorvastatina para o colesterol, Losartan para o coração e hipertensão, Metformina para evitar diabetes, polivitaminas para defesas, Norvastatina para a pressão e Desloratadina para alergia.
Como eram muitos medicamentos, era preciso proteger o estômago. Então, indicou Omeprazol, e um diurético para prevenir os inchaços.
Tio Tonico foi à farmácia e gastou boa parte da sua aposentadoria em várias caixas requintadas de cores sortidas. Só que, a essa altura, ele não conseguia mais lembrar se os comprimidos verdes para a alergia deviam ser tomados antes ou depois das cápsulas para o estômago e se devia tomar as amarelas para o coração antes ou depois das refeições. Aí, voltou ao médico. Este deu-lhe uma caixinha com várias divisões, mas achou que titio estava tenso. Receitou-lhe, então, Alprazolam e Sucedal para dormir.
Naquela tarde, quando ele entrou na farmácia, com as receitas, o farmacêutico e seus funcionários fizeram uma fila dupla para ele passar no meio.
Só que Tonico, em vez de melhorar, foi piorando. Ele passava praticamente todo o dia em casa, controlando os horários e tomando as pílulas.
Dias depois, o laboratório fabricante de vários dos remédios que ele usava, deu-lhe um cartão de “Cliente Preferencial”, um termômetro, um frasco estéril para análise de urina e um lápis com o logotipo da indústria.
Aí, o tio deu azar e pegou um resfriado. Tia Marocas fez ele ir para a cama, mas, desta vez, além do chá com mel, chamou também o médico.
O doutor disse que não era nada, mas prescreveu Tapsin para tomar durante o dia eSanigrip com Efedrina para tomar à noite. Como poderia ter uma pequena taquicardia, provocada pela Efedrina, receitou ainda Atenolol. Achou melhor, também, que tio Tonico tomasse um antibiótico, para evitar complicações: 1 g de Amoxicilina, a cada 12 horas, durante 10 dias.
Apareceram fungos e herpes e o médico, sempre atento, receitou Fluconazol.
Para piorar a situação, tio Tonico começou a ler as bulas dos medicamentos que tomava, e ficou sabendo das contraindicações, advertências, precauções e efeitos colaterais. Não só poderia morrer, mas ter arritmias ventriculares, sangramento anormal, náuseas, hipertensão, insuficiência renal, paralisia, cólicas abdominais, cefaleias, alergias, tosse, alterações do estado mental, inchaços e um monte de coisas terríveis.
Com medo de morrer, chamou o médico, que disse para ele não se preocupar, porque os laboratórios só colocavam aquilo tudo para se isentar de culpa.
– Calma, seu Tonico, não fique aflito – recomendou o médico, enquanto prescrevia uma nova receita com um antidepressivo Sertralina e mais Rivotril 100 mg. E como titio estava com dor nas articulações deu-lhe Diclofenaco.
Nessa altura, sempre que o tio recebia a aposentadoria, ela ia direto para a farmácia, onde ele já tinha sido eleito cliente VIP.
Chegou o momento em que o dia do pobre tio Tonico não tinha horas suficientes para tomar todas as pílulas. Assim, ele já não dormia, apesar das cápsulas para a insônia que haviam sido prescritas. Ficou tão ruim que, conforme advertido nas bulas dos remédios, penou mais de 100 dias numa dessa UTIs mercenárias e “veio a óbito”.
No funeral tinha muita gente, mas quem mais chorava era o farmacêutico.
Tia Marocas, desfrutando da viuvez radiante, afirma que felizmente mandou titio para o médico, porque, se não, com certeza, ele teria morrido antes.
Ela tem seu nome na história das muitas revoluções vividas pelas mulheres
Tem uma coisa melhor do que o feminismo, é o feminismo exercido na prática, ainda que longe dos manuais e das palavras de ordem. Rita Lee sabe que abriu “estradas, ruas e avenidas” e, hoje, “as garotas desfilam por aí”, mas diz que não tinha distanciamento histórico para se perceber como feminista, libertária, quebradora de tabus. “Eu simplesmente subia no palco, matava o pau e mostrava a xana”, disse numa entrevista em 2017.
Mesmo que se considerasse desconectada socialmente do movimento, imprimiu em suas letras a visão de um mundo no qual as mulheres são protagonistas. Rita é uma dessas mulheres que transformam a sociedade sem colocar rótulos nessas mudanças. Fez rock’n’roll com “ovários e úteros” num universo essencialmente masculino. Vestiu calças, festejou a liberdade sexual, cantou a igualdade de gênero.
Exorcizou o trauma de um estupro porque não gostava de se ver como “vítima”.
Em 2002, escreveu mais um capítulo nessa história ao integrar a primeira formação do programa Saia Justa, no GNT, idealizado pela jornalista Letícia Muhana. Ancorado por Monica Waldvogel, tinha ainda a atriz Marisa Orth e a escritora Fernanda Young, morta em 2019. Foi um marco na televisão brasileira pela irreverência das participantes, mas também pela forma como se revelavam tão humanas ao desnudar a crueza e beleza do universo feminino.
Rita e sua trupe inauguraram publicamente o conceito da sororidade muito antes que se falasse sobre ele, dissecando vivências que são comuns a todas as mulheres, ainda que vividas de formas diversas, mostrando que o feminino se encontra em muitos lugares de dor ou de regozijo.
O direito ao prazer, à igualdade e também ao envelhecimento sem patrulha. Esta última pauta mais uma das bandeiras que Rita Lee levantou mesmo sem querer, ao apontar a chegada da idade como a conquista da sabedoria; ao se colocar ao lado das feiticeiras e combater o preconceito antes que a palavra etarismo entrasse em nosso dicionário do dia a dia.
Dizer que a senhora Lee foi uma mulher à frente de seu tempo pode parecer clichê, mas ela esteve na vanguarda de muitas das concepções sobre o universo da mulher que passaram a ser mais bem entendidas e enfrentadas apenas quando o feminismo nos bateu à porta novamente, já no século 21.
A cantora se consagra como ícone do movimento e terá seu nome lembrado na história de muitas revoluções pelas quais nós, mulheres, passamos. Sim, Rita, você fez muita gente feliz.
Onan ( hebraico : אוֹנָן, Modern Onan, Tiberian ‘Ônān; “Strong”) é uma pessoa bíblica menor no livro de Gênesis capítulo 38, que era o segundo filho de Judá. Tal como o seu irmão mais velho, Er , Onan foi morto por Yahweh para derramar sua semente no chão em vez de impregnação a viúva de seu irmão. A morte de Onan foi retribuição por ser “mau aos olhos do Senhor” por estar disposto a pai de uma criança por sua irmã-de-lei viúva.
É curioso como o Brasil se une no puritanismo quando menos se espera
Tento imaginar a reação de Rita Lee se lesse os comentários indignados dos leitores com o título de um texto da Folha que relaciona a cantora a drogas. Houve quem chamasse de desrespeitoso, nojento, vergonhoso, baixaria, inaceitável. Outros atribuíram misoginia, fascismo, insensibilidade ao jornal e à autora. E houve a exigência de que o post fosse apagado e a jornalista, demitida –além de caçada nas redes sociais.
É curioso como o Brasil se une no puritanismo quando menos se espera e como o progressismo se revela tão careta quanto o seu extremo oposto. Fossem os cidadãos de direita, que relacionam o uso de drogas a marginais e vagabundos, seria compreensível que esperassem que parte da biografia da maior estrela do rock ficasse escondida no meio do obituário.
Espanta ver o espírito embolorado de pessoas, em especial as de esquerda, que ora escrevem textão sobre a importância da legalização das drogas e da humanização do usuário, ora consideram afronta o jornalismo abordar de forma natural um assunto que a própria Rita Lee sempre tratou com transparência. Algo que, como ela mesma disse tantas vezes, influenciou o seu trabalho.
Os críticos consideram o comportamento de quem usa drogas “vergonhoso”, “nojento” ou “baixaria”? Se não, por que a menção a isso nas redes deveria ser vista assim? Essa reflexão é não apenas sobre Rita Lee mas também sobre a retórica conservadora de que droga é um mal que deve ser combatido com preconceito e repressão. É sobre o cracudo que vive nas ruas, o viciado em reabilitação, sobre o tráfico que mata pretos e pobres.
Rita Lee foi ser iluminado, mulher à frente de seu tempo, artista excepcional, mãe amorosa, avó dedicada, parceira de vida apaixonada. Nada disso foi abalado por sua relação de décadas com os ilícitos, pelo contrário. O que Rita diria? Este tuíte talvez responda: “Vc nem imagina a imensidão do qto estou pouco me fudendo p o que dizem. A vida é curta e eu sou grossa”.
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