A imprensa ou é comunista ou é anarquista. Um exemplo: um filho de ex-deputado milionário furou bloqueio da PM e abandonou o carro importado, no qual foram encontradas drogas ilícitas.
Comunista, porque os carros importados de milionários são agravantes nos acidentes de trânsito, uma distinção que não merecem os calhambeque que, na sua maioria fazem o mesmo. Anarquista, porque o delito cometido por políticos ou milionário é sempre mais grave que o cometido pelo pé-de-chinelo.
Aquilo de que todos são iguais perante a lei não funciona, porque mais tarde esses iguais serão desiguais perante a justiça. O dono do jornal, nada comunista, jamais anarquista, deixa passar, pois vende seu produto. Quem escreve a notícia, com o prazer de expor o rico e o poderoso revela a pontinha do recalque. São os vieses, a palavra que só usamos no singular.
Janja não é criticada por ser mulher ou feminista, mas por trapalhadas ligadas ao cargo ocupado por seu marido
Nunca entendi direito o cargo de primeira-dama. Esposas de médicos, juízes, engenheiros não têm papel algum no trabalho de seus maridos. Por que haveria de ser diferente com o presidente da República?
Na América Latina, o posto é valorizado com carga emocional. Sintoma do personalismo populista que grassa na região, primeiras-damas por aqui adquirem status de “mãe do povo” e até de santa —como Evita Perón, na Argentina.
No Brasil, a atual ocupante do cargo tem dado o que falar. Primeiro, pela compra de um sofá no valor de R$ 65 mil e, principalmente, por se meter na divulgação de medida econômica do governo.
Janja retrucou a postagem de um site de fofocas que tratava do fim da isenção de imposto para compras internacionais entre pessoas físicas e disse que a taxa seria cobrada das empresas, não dos consumidores. Logo críticas ao comentário disparatado viralizaram nas redes sociais.
Aí entra o feminismo oportunista em ação. A primeira-dama estaria sendo atacada por ser uma mulher com voz ativa num posto sempre ocupado por mulheres passivas.
E, aqui, entra o oportunismo político-ideológico. As feministas se esquecem de Ruth Cardoso, primeira mulher no cargo a ter uma carreira própria, produção acadêmica pujante e trabalho dedicado ao combate à pobreza reconhecidos com condecorações em países como Dinamarca, França, Finlândia, e pela ONU.
Em 1996, em entrevista ao Programa Livre (SBT), defendeu a descriminalização da maconha quando poucas figuras públicas ousavam fazê-lo. Na mesma ocasião, deixou claro seu já notório desconforto com o termo “primeira-dama” e a preferência pelo tratamento acadêmico: “Fiz força para ser doutora”, disse.
Ou seja, Janja não é criticada por ser mulher ou feminista, mas pelas suas trapalhadas relacionadas ao cargo ocupado pelo marido.
Talvez o ideal seja tratar primeiras-damas como os primeiros-cavalheiros: ninguém se importava com o marido de Angela Merkel.
Cada vez que descubro uma em situação assim, vibro. Aqui e agora, é o caso da palavra esnobe. Posso perguntar de olhos fechados no meio de um salão com mil pessoas e todas vão dizer que esnobe é o cara que é cheio de si, se acha, é rico e tem nariz empinado. É ou não? É o cara se quer acima na vida e não dá bola pros outros. Em suma, que esnoba os outros. Em meu ofício de escritor, em primeiro lugar as palavras.
E o lugar delas é o dicionário e outros livros. Além das que são proferidas nas conversas. Uma vez o Ivan Lessa, que é outro catador de palavras, falou de um livro de etimologia que estava saindo do forno. Ele folheou e não gostou. O autor não ia fundo no poço pra contar sobre a origem das palavras. Eu, de minha parte, gosto quando encontro uma origem bem fundamentada e que me ajuda na escrita.
No caso de esnobe, eu sabia que no original se grafa snob, mas nem atinava o que queria dizer. É claro que usava no sentido moderno, que significa tudo aquilo que já disse antes. Aí, num livro de Ortega y Gasset chamado A Rebelião das massas (não é das massas de comer!), encontrei o real significado de snob. E é francamente o oposto do que nós conhecemos! Pode isso? Veja: na Inglaterra de tempos atrás, as listas das residências indicavam junto a cada nome o ofício e a classe da pessoa. O nome dos simples burgueses era acompanhado da abreviatura s. nob., que queria dizer sem nobreza! Sine nobilitate (em Latim). Ralé! Segundo Ortega Y Gasset é o homem-massa, previamente esvaziado de sua própria história e sem entranhas de passado. Só tem apetites, crê que só tem direitos e nenhuma obrigação. Aqui se transformou em pessoa que se acha superior, que sabe mais, que dá de ombros pras idéias dos outros.
Por essas e outras é que mergulho no reino silencioso das palavras. Às vezes, pego um peixe bom. É comida pra alguns dias. Depois, trato de limpar o arpão e… tchabuuum!
*Autor de Nem bobo nem nada, primeiro romancélere do Brasil – com 150 capitulozinhos do capeta.
A professora leciona há 40 anos, mas nada do que disser fará diferença.
Na primeira aula de modernismo 1 a professora começa a escrever na lousa o “Poema de Sete Faces”, do Drummond: “Quando eu nasci, um anjo torto” —”esse verso é problemático!”, ribomba uma voz do fundo da sala. Ela se vira e fica surpresa ao perceber que a voz tonitruante vem de um magricela que não parece ter mais de 18 anos. Ele a encara com um brilho nos olhos, o brilho dos que viram a luz.
Com a segurança de um palestrante num TED Talks —coisa rara, antigamente, em primeiranistas— o aluno explica: “Um anjo?! Sério?! Anjo é um elemento do catolicismo, é a religião opressiva do invasor. Esse verso aí reforça o colonialismo que massacrou e calou as religiões dos povos originários! Por que não: ‘Quando eu nasci, Anhangá’? Ou: ‘Quando eu nasci, Xolotl’? Ou: ‘Quando eu nasci, Wakan Tanka’?”
Os olhos da professora percorrem a classe em busca de alguma cumplicidade, uma piscadela que sussurrasse “esquece, ele é um mala, bola pra frente”, mas as expressões desafiantes sugerem é apoio ao magricela. “Bom, Drummond era de Minas Gerais, um estado muito católico. As referências do autor vêm do caldo cultural em que ele” —interrompem-na de novo. Agora é uma garota loira, que joga a ponta de sua keffiyeh palestina por cima do ombro e brada: “Claro: homem, hétero, cis e branco, só pode falar do próprio umbigo, mesmo, não é capaz de tirar a bunda do privilégio e ir até as periferias, até as comunidades, falar do Brasil real!”.
Já se passaram alguns minutos e estão empacados na quinta palavra do poema: a professora tenta contemporizar. “Vocês têm razão. São temas interessantes. Podem inclusive pensar em alguma coisa por aí pro trabalho de encerramento do curso. Agora vamos lá pro próximo verso” —”péra!”, ordena outro aluno. “Tem outra coisa que me incomoda, aí, mais até que o anjo: ele diz ‘anjo torto’. Torto, gente? Torto é capacitismo! ‘Torto’ é tão ofensivo pra uma pessoa com deficiência como manco, vesgo, anão, mudinho. Na boa, professora, mas foi uma escolha muito problemática do Drummond. Por que não, em vez de ‘anjo torto’, ‘Anhangá portador de deficiência’? Ou, pra não zoar a métrica, ‘Wakan Tanka PCD?’”
“Olha, pessoal, isso é um poema. Quando o eu lírico diz que o anjo é ‘torto’ ele não tá dizendo fisicamente ‘torto’. É metafórico. Vamos seguir com o poema que fica claro”, ela fala enquanto escreve na lousa, rapidamente: “Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.” Explica: “pra quem não sabe, ‘gauche’ em francês é esquerda, mas também canhestro, atrapalhado e” —um aluno se levanta, revoltado, no fundo da sala: “Ah lá! Esse homem branco, hétero, cis e colonialista vem falar em francês que ser de esquerda é errado!”. Uma garota se levanta também: “Drummond fascista!”. Outra emenda: “Sabia que ele traía a mulher?! Era um machista! Misógino! Poetas abusadores não passarão!”. A professora tenta, embalde, voltar à aula: “turma, turma, vamos primeiro terminar o poema?”. Um aluno grita “não é sobre poesia, é sobre decolonialismo!”.
A professora leciona há 40 anos. Teve aula com Antonio Candido e Milton Santos, resenhou Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu, mas percebe que nada do que disser ali fará qualquer diferença: eles vieram para ensinar, não para aprender, trouxeram a cartilha pronta e segundo tal cartilha, aparentemente, não há mais lugar na literatura brasileira para Carlos Drummond de Andrade. “Mundo mundo vasto mundo,” —ela pensa— “se eu me chamasse Raimundo/ Seria uma rima, não seria uma solução./ Mundo mundo vasto mundo,” —ela espera— “mais vasto é o meu coração”.
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