René Dotti jamais escondeu ou esqueceu a sua origem humilde. Ao contrário, sempre a relembrava, muitas vezes com os olhos marejados. Filho de um pintor de paredes e de uma costureira, nascido e criado num “arrabalde” da cidade, como dizia, muitas vezes reconhecia, com incontido orgulho, que sofria da síndrome da perfeição. E arrematava contando que seu pai jamais havia entregue uma parede sem que a pintura estivesse perfeita e que sua mãe nunca havia dado por completa uma costura que também não estivesse inteirada. Relembrava a infância de apertos, dizendo que nunca havia faltado comida em casa. Contava que desde cedo acordava às cinco da manhã, horário em que toda a família já estava de pé na luta pela sobrevivência. O caminho do arrabalde ao Colégio Estadual (onde fez toda a sua formação pré-profissional) era longo. Tinha que acordar de madrugada e caminhar, não havia dinheiro para o ônibus, depois do café da manhã que a mãe lhe preparava. Guardou o costume de acordar às cinco da manhã por todos os seus 86 anos.
Era marcante quando René relembrava o dia em que o pai chegou em casa com um rádio de válvulas, comprado em várias prestações, numa das lojas do centro da cidade. O aparelho era a atração da casa. Contava que acompanhava, com incontida emoção, o “speaker” narrar os gols do seu Coxa Branca. Imaginava as jogadas conforme o locutor ia narrando. Conhecia o Alto da Glória e pela narração sabia exatamente ao lado de qual publicidade pintada na mureta do estádio o ponta esquerda havia cruzado a bola para o “center-forward” saltar mais alto que os “backs” e colocar a bola nos fundos das redes. Não tinha dinheiro para ir ao Estádio Belford Duarte (antigo nome do Couto Pereira) em dia de jogos, mas nas sextas-feiras, antevéspera de clássico (Atlético ou Ferroviário), cabulava as aulas depois do recreio, ao lado de outros colegas do mesmo credo, e iam ao estádio assistir ao “apronto” ou “coletivo”, como diziam os cronistas da época, entre titulares e reservas. Notava que o treinador colocava o “goalkeeper” titular na equipe dos suplentes, os atacantes titulares sempre exigiam mais do goleiro.
Às vezes, entrava em pânico. Os reservas, querendo mostrar serviço, dividiam pesado e um titular acabava lesionado e era baixa para o domingo. Temia que o substituto não desse conta do recado. Mais tarde, quando já ganhava um “dinheirinho”, passou a frequentar o estádio e percebeu que os “speakers” eram muito exagerados nas narrações que faziam. “A bola passava longe e o sujeito gritava que tinha tirado tinta da trave”.
René relembrava que na adolescência pensou em ser médico. Mais tarde, não tendo condições financeiras para pagar um curso preparatório para as pouquíssimas vagas da Faculdade de Medicina da Federal, a única existente, resolveu arriscar o curso de direito, este sim, com 100 vagas. Não tenho dúvidas que, se médico fosse, teria sido um extraordinário cirurgião, salvo milhares de vidas e com seu extraordinário poder de oratória consolaria os familiares daqueles que não pudesse evitar a morte. René Dotti era um cirurgião da vida, sua inteligência era um verdadeiro bisturi que operava coisas maravilhosas em tudo o que fazia. Continue lendo