Ante-véspera do Ano Novo Judaico.Boris Sylberstein, patriarca judeu, morador de um Kibutz pertinho de Tel Aviv, visita um dos seus filhos na capital de Israel: — Jacobzinho, odeio ter que estragar tua dia, mas babai brecisa dizer-te que a mamái e eu vamos separar-nos, depois de 45 anos! — Tá louca babai, o que você tá dizendo? Grita Jakob.Jerusalém inteira ouve… — Não conseguimos mais nem nos olhar uma ao outra. Vamos separar-nos e acabou-se o que era doce. Ligue bra teu irmã Rachel e conte bra ela. Apavorado, o rapaz liga para a irmã em Viena, que se desespera ao telefone: — De jeito nenhuma nossos pais irão separar-se! Chame babai ao telefone! O ancião atende e a filha balbucia na maior emoção: — Não façam nada até nós chega aí amanhã, gombrende? Também chamarei Moishe em São Paulo,Shloimo em Buenos Aires e Esther no Nova Iorque e amanhã de noite, todas estaremos aí, ouviu bem babai? Bate o telefone, sem deixar o pai responder. O velho coloca o fone no gancho, vira-se para a mulher, sem que Jakob ouça, sussurrando:
— Bronto Sarah, todos virão para a Ano Novo.Só que, desta vez, não bagaremos os bassagens!
Depois Nabo fino diz que eu me acho. Mas, vejam essa foto feita na tradicional cantina Il Vagabondo, em NY, em 1998, onde eu apareço sorridente empunhando a revista Pesca Esportiva que tinha acabado de criar para o empresário Ernani Paciornick, da revista Náutica. À esquerda, meu amigo Ives Tavares, o pêndulo de Foucaut, (precocemente falecido no ano seguinte) que voltava dos Jogos Pan de Winnipeg, no Canadá.
O detalhe – para o qual chamo sua atenção – está na parede, uma galeria fantástica de fotos de celebridades e amigos da casa, onde apareço homenageado ao lado de Naná e Carol, minha filha (ela trabalhava no coat desk do restaurante).
O motivo da homenagem: uma reportagem que fiz para a revista Viagem, de SP, dois anos antes, sobre dicas na cidade, que levou mais de 40 (até onde contamos) leitores brasileiros ao restaurante, na rua 62 East.Depois Nabo fino diz que eu me acho…
No final de semana dedicado a pesquisar, entre papéis velhos, algum material para a biografia que, sobre este vosso mínimo escriba, trabalha a jornalista Paola de Orte, me escapa da pasta amarrada por encardido barbante uma foto. Gira no ar, indiscernível, e indiscernível cai sobre o tapete do escritório.
Apresso-me em catá-la do chão. Velha foto de margens rendilhadas, tão antiga quanto este quase vetusto locutor que vos fala. E lá estou eu – sete, oito anos talvez, abraçado a um risonho Papai Noel em frente ao Prosdócimo da Pça. Tiradentes. O detalhe hilário é que também escancaro, sem o menor pudor, um sorriso banguela de quem acaba de perder os dentes-de-leite frontais.
Me chama atenção ali um raio de sol, oblíquo, de longínqua tarde curitibana, de meados dos cinqüenta, tão absolutamente fixado à foto, e à vida, que parece só uma luminiscência que a memória retraz com as tintas da saudade e da melancolia. Em que escaninho do tempo ficou para sempre perdida a risada do menino, o menino, o velho Noel, as lojas Prosdócimo, a esquina de Tiradentes com
Cruz Machado?
Poderia ser mais simples, mas não é. Está ali (ouviu, Paola de Orte?), o “moleque” egresso do sertão e já quase “piá” curitibano; está ali o aluno recém-alfabetizado por dona Chiquita Ghignone na escola primária da Federação Espírita, então comandada pelo saudoso “seo” Abib; está ali o guri de paletozinho herdado do primo que cresceu antes, as pontas do colarinho da camisa rígidas sobre a lapela, impávido colosso…
Se o menino é o pai do homem, sobram-me os olhos. Só eles identifico nas fotos de hoje que andam por aí, éditas ou inéditas. Ainda assim com um detalhe essencial – os olhos de ontem olham por mim o mágico e o encantado, o fascínio das coisas adultas e grandiloqüentes. Como o trambolho de tirar fotografia cuja sombra projeta-se na calçada.
Sou apenas um menino do interior, migrado das terras onde a cultura do café iniciava então a sua decadência, expulsando proletas de toda espécie à capital do Estado que aqui enchiam as pensões vizinhas à velha ferroviária da Pça. Eufrázio Correia. Impossível esquecer esse “intermezzo” entre Jaguapitã e o sonho vão acalentado pelo pai – de “enricar” na Capital. Tão fria! Tão gelada!
Em meu único livro de poemas, uma reunião de tankas chamada Pequeno Tratado de Brinquedos (Iluminuras, 2003), tento o resumo da ópera:
“Em cinqüenta e cinco/chegamos à ferroviária/ as malas e os filhos/ante o súbito pinheiro/primeiro pasmo do exílio”.
Alguns anos depois é que eu conheceria as tertúlias do Centro de Letras do Paraná, com a poetisa Josete Shwölke, a recitar, gordota e de tailleur esmeralda, ricos sonetos onde o pinheiro é sempre uma taça contra o azul dos outonos de Curitiba.
Quantas tardes até esta em que, ímã do Tempo, no escritorinho do Boa Vista, a foto antiga rodopia e cai, como rodopia e cai, sem alarde,
No feriadão, a capital paranaense quedou-se silenciosa e vazia. No meio da noite podia-se ouvir a apito do trem na Serra do Mar e as ruas lembravam a Curitiba de 1940, quando o ronco do interventor Manoel Ribas não deixava ninguém dormir direito.
Naqueles idos, existia em Curitiba um grupo de moços denominado Patrulha da Madrugada. “O que faziam eles então?” – pergunta e responde o professor e crítico Temístocles Linhares, no livro Relíquias de uma polêmica entre amigos, editado e prefaciado, em 1985, pelo então
secretário da Cultura René Dotti.
“A altas horas, depois de visitar a redação dos jornais, onde alguns escreviam, rabiscando crônicas ou notícias, saíam em busca de melhores ares, a percorrer ruas e praças vazias, para conversar ou mesmo discutir os grandes problemas sem solução. Diga-se desde logo que, a despeito da inocência dessas conversas fiadas, às vezes em voz mais alta do que de costume, a patrulha era o terror das pacatas famílias curitibanas, não passando os patrulheiros de perigosos desordeiros, perturbadores da ordem e do sono dos que sonhavam com anjos e não concebiam poder apanhar o sereno da noite sem a maior ameaça para a saúde. No entanto, não havia nada mais ofensivo, seja em matéria de bem-estar do organismo, seja em benefício da ordem pública”.
E continua a apresentação do literato Temístocles:“Hoje, seria disparatado pensar assim. A cidade cresceu e mudou, para tornar-se a metrópole que é agora, cheia de carros e de gente, a qualquer hora do dia e da noite. Cheia de barulho, sobretudo. Mas, naquela época, a tranqüilidade e modorra da pequena burguesia nela predominante eram realmente proverbiais. É certo que a nova geração já se opunha às vezes contra aquela pacatez provinciana”.
A Patrulha da Madrugada que tirava o sono da pacata pequena burguesia tinha dezenas de nomes ilustres. Só para citar alguns, naquele sodalício noturno tinha o pintor Guido Viaro, “teatral e gesticulante, sobretudo quando se referia a Nero como incendiário de Roma”; Leo Cobe, grande matemático; Pretextato Taborda Ribas, banqueiro e proprietário de grande parte dos imóveis do centro da cidade; mais os quatro amigos que deram origem ao livro: Milton Carneiro, médico formado no Rio de Janeiro, professor de Biologia na Universidade e “o mais notívago dos patrulheiros, que só voltava para casa quando o dia amanhecia”;Bento Munhoz da Rocha Netto, futuro governador eleito do Paraná;Caio Machado, filho de Vicente Machado que se formara em Ciências Sociais na Suíça; o próprio Temístocles Linhares, que morou alguns anos em Buenos Aires e chegou a manter amizade com Jorge Luis Borges.
A polêmica entre os quatro amigos da Patrulha da Madrugada travou-se pela imprensa, em 1943. Começou em torno da Rússia, do que ela representava para os aliados na Segunda Guerra Mundial, e terminou – “Falar no comunismo da Rússia constituía verdadeiro tabu”-quando o delegado de Getúlio Vargas, da Ordem Política e Social, mandou suspender a discussão escrita entre os quatro amigos.
***
Neste feriadão, Curitiba quedou-se silenciosa e vazia. Pacata, como se estivéssemos nos idos de 1940. No meio da noite, podia-se ouvir o apito do trem na Serra do Mar, o ronco de Maneco Facão, e o alarido da Patrulha da Madrugada.Os pioneiros vampiros de Curitiba.
No final de semana dedicado a pesquisar, entre papéis velhos, algum material para a biografia que, sobre este vosso mínimo escriba, trabalha a jornalista Paola de Orte, me escapa da pasta amarrada por encardido barbante uma foto. Gira no ar, indiscernível, e indiscernível cai sobre o tapete do escritório.Apresso-me em catá-la do chão. Velha foto de margens rendilhadas, tão antiga quanto este quase vetusto locutor que vos fala. E lá estou eu – sete, oito anos talvez, abraçado a um risonho Papai Noel em frente ao Prosdócimo da Pça. Tiradentes.
O detalhe hilário é que também escancaro, sem o menor pudor, um sorriso banguela de quem acaba de perder os dentes-de-leite frontais.Me chama atenção ali um raio de sol, oblíquo, de longínqua tarde curitibana, de meados dos cinqüenta, tão absolutamente fixado à foto, e à vida, que parece só uma luminiscência que a memória retraz com as tintas da saudade e da melancolia. Em que escaninho do tempo ficou para sempre perdida a risada do menino, o menino, o velho Noel, as lojas Prosdócimo, a esquina de Tiradentes com Cruz Machado?
Poderia ser mais simples, mas não é. Está ali (ouviu, Paola de Orte?), o “moleque” egresso do sertão e já quase “piá” curitibano; está ali o aluno recém-alfabetizado por dona Chiquita Ghignone na escola primária da Federação Espírita, então comandada pelo saudoso “seo” Abib; está ali o guri de paletozinho herdado do primo que cresceu antes, as pontas do colarinho da camisa rígidas sobre a lapela, impávido colosso…Se o menino é o pai do homem, sobram-me os olhos. Só eles identifico nas fotos de hoje que andam por aí, éditas ou inéditas. Ainda assim com um detalhe essencial – os olhos de ontem olham por mim o mágico e o encantado, o fascínio das coisas adultas e grandiloqüentes. Como o trambolho de tirar fotografia cuja sombra projeta-se na calçada.Sou apenas um menino do interior, migrado das terras onde a cultura do café iniciava então a sua decadência, expulsando proletas de toda espécie à capital do Estado que aqui enchiam as pensões vizinhas à velha ferroviária da Pça. Eufrázio Correia. Impossível esquecer esse “intermezzo” entre Jaguapitã e o sonho vão acalentado pelo pai – de “enricar” na Capital. Tão fria! Tão gelada!Em meu único livro de poemas, uma reunião de tankas chamada Pequeno Tratado de Brinquedos (Iluminuras, 2003), tento o resumo da ópera: “Em cinqüenta e cinco/chegamos à ferroviária/ as malas e os filhos/ante o súbito pinheiro/primeiro pasmo do exílio”.
Alguns anos depois é que eu conheceria as tertúlias do Centro de Letras do Paraná, com a poetisa Josete Shwölke, a recitar, gordota e de tailleur esmeralda, ricos sonetos onde o pinheiro é sempre uma taça contra o azul dos outonos de Curitiba.Quantas tardes até esta em que, ímã do Tempo, no escritorinho do Boa Vista, a foto antiga rodopia e cai, como rodopia e cai, sem alarde, a velha folha de uma árvore?
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