Da coluna de Joaquim Ferreira dos Santos, O Globo, 23/05/2022:
“Ali naquele canto havia uma rede e um dia, deitado nela, o poeta Vinícius de Moraes suspirou: O bom da vida é comer um papo de anjo ao lado da mulher amada”.
(…)
Rubem Braga – Ah, Vinícius, deixa de conversa, o bem mesmo é comer a mulher amada ao lado de um papo de anjo”.
“Enquanto não possuía nada além da minha cama e dos meus livros, eu estava feliz. Agora eu possuo nove galinhas e um galo, e minha alma está perturbada. A propriedade me tornou cruel.
Sempre que comprava uma galinha amarrava-a dois dias a uma árvore, para impor a minha morada, destruindo em sua memória frágil o amor à sua antiga residência. Remendei a cerca do meu quintal, a fim de evitar a evasão dos meus pássaros, e a invasão de raposas de quatro e dois pés. Eu me isolei, fortifiquei a fronteira, tracei uma linha diabólica entre mim e meu vizinho. Dividi a humanidade em duas categorias; eu, dono das minhas galinhas, e os outros que podiam tirá-las de mim. Eu defini o crime. O mundo encheu-se para mim de alegados ladrões, e pela primeira vez eu lancei do outro lado da cerca um olhar hostil.
Meu galo era muito jovem. O galo do vizinho pulou a cerca e começou a corte das minhas galinhas e a amargar a existência do meu galo. Despedi o intruso a pedrada, mas eles pularam a cerca e aovaron na casa do vizinho. Eu reclamei os ovos e meu vizinho me odeia. Desde então vi a cara dele na cerca, o seu olhar inquisidor e hostil, idêntico ao meu. Suas galinhas passavam a cerca, e devoravam o milho molhado que consagrava aos meus. As galinhas dos outros me pareciam criminosas. Persegui-os e cego pela raiva matei um. O vizinho atribuiu grande importância ao atentado. Ele não aceitou uma indemnização pecuniária. Retirou gravemente o corpo do seu frango, e em vez de comê-lo, mostrou-o aos seus amigos, o que começou a circular pela aldeia a lenda da minha brutalidade imperialista. Tive que reforçar a cerca, aumentar a vigilância, aumentar, em suma, meu orçamento de guerra. O vizinho tem um cão determinado a tudo; eu pretendo comprar uma arma.
Onde está minha antiga tranquilidade? Estou envenenado pela desconfiança e pelo ódio. O espírito do mal tomou conta de mim.
Eu era um homem.
Agora eu sou um dono.”
(“Galinhas”, do anarquista Galinhas / Rafael Barrett, Paraguai, 1910)
“Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo encontra-se neste andar.” (Lei /DF Nº 3212 de 30.10.03) Antes de entrar no elevador, verifique se o seu QI está à altura do redator deste aviso. A espera pode ser longa. Antes de entrar no elevador, verifique se você encontra-se mesmo fora dele. Antes de entrar no elevador, verifique se o edifício tem mesmo todos os andares que afirma ter. Antes de entrar no elevador, verifique se você não está parado diante de outro elevador no prédio da esquina. Antes de entrar em pânico, verifique se o elevador também encontra-se em pane neste pandemônio. Antes de entrar no mérito da questão, verifique se o ascensorista não é revisor. Antes de vandalizar a plaquinha na porta do elevador, verifique se a mesma ainda se encontra onde se encontrava. Antes de entrar no elevador ausente, verifique se a sua lógica está presente. Antes de entrar em parafuso neste andar, verifique se em vez de alertar os usuários não seria mais racional exigir elevadores menos falíveis.
Antes de despencar deste andar sem elevador, verifique se o fosso encontra- se mesmo lá no fundo.
Os agentes da PRF não fizeram uma abordagem policial; cometeram um crime
Na cidadezinha do Nordeste, Genivaldo de Jesus Santos é assassinado no porta-malas da viatura transformada em câmara de gás. Um dos assassinos lança o veneno sobre Genivaldo como quem aplica inseticida para eliminar uma barata.
Genivaldo grita e se debate em desespero. Suas pernas pedem socorro. Genivaldo pede socorro. Mas não será ouvido. Vai desmaiar e morrer nos próximos minutos o cidadão de Umbaúba, Sergipe. Brasil. Os agentes da Polícia Rodoviária Federal não fizeram uma “abordagem policial”. Cometeram um crime, sem dar chance de defesa à vítima. Homicídio qualificado, segundo o Código Penal.
Também está errado referir-se à chacina na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, como “operação de inteligência”. Não podemos repetir essa ignomínia e, muito menos, aceitá-la, sob pena de nos tornarmos cúmplices. Nossa indignação tem que dar às coisas os nomes que elas têm: carnificina, mortandade, matança, morticínio, assassinato em massa. Quais os crimes atribuídos aos mortos? Sua culpa, sua máxima culpa, foi terem nascido pretos e pobres.
O governador Cláudio Castro e as autoridades de (in)segurança têm que responder por essas execuções. Sem qualquer freio ou controle, excitada pelo frenesi de violência do bolsonarismo, a polícia do Rio age sem se distinguir de esquadrões da morte ou grupos de extermínio.
O massacre foi planejado para deixar rastros de sangue e terror, intimidar e imobilizar a sociedade e as instituições. Na chacina da Vila Cruzeiro, como na do Jacarezinho, um ano atrás, os comandos policiais desafiaram explicitamente a ordem do STF de só fazer incursões nas favelas em situações excepcionais.
Nesta semana funesta, não pode passar em branco a hostilidade de empresários do Rio Grande do Sul que levou ao cancelamento da viagem do presidente do STF, Luiz Fux, para evento no estado, por questão de “segurança”. O bolsonarismo arreganha os dentes e prenuncia a radicalização extremista do período eleitoral.
EDSON FACHIN, ministro presidente do TSE, revela-se um anjo de candura: declarou ontem que nas eleições tentará desarmar os espíritos. Ledo e doce engano. Para desarmar os espíritos ele precisa antes desarmar Jair Bolsonaro. Se ele fala de espírito, a mais alta função da carne mortal, Bolsonaro só tem espírito de porco. Se espírito é sinônimo de alma, Bolsonaro sequer sabe pronunciar dizer a palavra. Para ele é ‘arma’, variando o calibre, assim manda seu espírito.
Quando o telefone tocou com a notícia curta e sem sentido, não quis acreditar na morte do cineasta
Quatro semanas atrás, escrevi uma crônica sobre o casamento de um amigo de adolescência. A de hoje é a continuação daquela. O reverso da outra, o lado B da festa.
As bodas ocorreram no dia 14 de abril. Um mês exato depois, num sábado de sol frio na Guanabara, o telefone tocou com uma notícia curta e sem sentido: “O Breno morreu”. Fingi não ouvir. Voltei para o quarto e me agarrei ao crochê, querendo crer em boato. O silêncio na sala, no entanto, não era um bom sinal.
Larguei a agulha e fui encarar o fato. Andrucha chorava. A produtora de “Dona Vitória”, longa que Breno rodaria com a minha mãe, confirmou a tragédia. Ele se sentira mal no primeiro dia de filmagem, numa cidadezinha do interior de Pernambuco, e sofrera um mal súbito, sentado diante do video assist.
A última vez que eu o vi foi na cerimônia de casamento. E de todas as mazelas que descrevi na famigerada crônica, das próteses femorais às apneias, dos cálculos renais às obstruções coronarianas, nenhuma dizia respeito ao Breno. De todos ali, ele era o que menos havia pecado. Não bebia e não fumava, embora sofresse de pressão alta e exercesse sua profissão de maneira obstinada, emendando projetos gigantescos, sem nunca se dar trégua.
Breno havia terminado a segunda temporada do excelente “Dom” e faria a terceira no segundo semestre. Em paralelo, escrevera com Paula Fiúza, sua esposa, um roteiro baseado na história real de uma retirante nordestina que conseguira comprar, a muito custo, um pequeno apartamento no Leme, virado para a mata. A casa própria seria a garantia de uma aposentadoria segura, não tivesse a miséria tomado o morro e a violência dominado a cidade. O futuro nada garante.
Breno queria trabalhar com dona Fernanda e, para conciliar datas, cavou espaço numa agenda já sobrecarregada. É comum associar o artista à leniente cigarra da fábula, mas estamos mais para a formiga. Em cinema, trabalha-se 12 horas por dia, seis dias por semana. Antes, um filme durava dois meses, hoje, com as séries, lavora-se cinco seguidos nessa batida.
O audiovisual é uma indústria pesada, feita com paixão e risco. Como produtor e diretor, pesava sobre o Breno a responsabilidade de gerir orçamento e prazos. Atrasar um projeto, muitas vezes, significa esquecê-lo, e dar o sinal verde para o início de uma produção, assumir uma logística comparável à de uma empreitada de guerra.
Mas a carga horária e a pressão não explicam a morte dele, tampouco seu espírito vocacionado, que o levava a esticar a corda. Não. Há oito anos, um tumor no cérebro, sem aviso ou causa, levara embora a mãe de suas duas filhas, Renata, a mulher mais gentil que já existiu, minha colega de turma na escola. Tudo o que envolve a partida do Breno é especulação, da reação trombótica provocada pela Covid recente a uma possível bomba relógio congênita, plantada, há muito, no coração.
Éramos cerca de 50 comparsas no casório, no velório do MAM, era uma geração inteira. Atores, diretores, produtores, fotógrafos, roteiristas, editores, músicos e técnicos, além dos sócios viúvos da Conspiração Filmes, vieram velá-lo. O da prótese femoral arrastava as muletas, o das pedras no rim enviava mensagens de pasmo do México e o do stent coronariano, parceiro de Breno em vários trabalhos, comparava o choque com a partida do amigo ao da perda do Titã Marcelo Fromer.
Tony Belloto, também presente, confessou que o atropelamento do guitarrista marcou o fim da adolescência da banda. No lugar da imortalidade juvenil, a consciência perturbadora da fragilidade humana. O flerte dos 20 com o suicídio mata aos 50.
Renato Piau fazia parte da banda de Luiz Melodia. Meus vizinhos pensam que sou piauiense. Eu também. Este CD foi presente de Toninho Vaz, grande amigo do moço de Teresina. Creusa e Delite Fonseca: cadê os outros cds que vocês ficaram de mandar para o cartunista da longínqua Curitiba? Sem fumar, espero.
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