Janeiro

Eu testei negativo. Mas não tenho muito o que comemorar. Dois médicos me asseguram que tive a praga. Também acho. E de tudo o que mais me impressionou, além da boca que tornava horrível qualquer alimento, foi o mega cansaço. Como de uma hora pra outra nossa energia vai pro ralo e parece que nunca mais vai voltar

Não sei você, mas eu começo o ano fazendo planos. Menos glúten, mais ginástica. Mais leitura de livros e muito menos zaps. Viajar mais. Acho que todo mundo é mais ou menos assim. Antônio Maria, por exemplo, era. Meu mais novo ídolo. Foi com um prazer imensurável que li suas crônicas reunidas em Vento vadio. Elas salvaram meu final/começo do ano, dos mais negros dos últimos tempos.

Em 16 de janeiro de 1954, ele registrava seus desejos para o ano que começava na crônica Diante do espelho:

“As intenções de janeiro eram as melhores possíveis. Regrar a vida, metodizar o trabalho, dormir oito horas, guardar os domingos e festas de guarda, pagar as dívidas, juntar dinheiro, ler, emagrecer, estudar inglês, tirar férias, tomar banho de mar, detestar uísque, não fazer um samba sequer e adquirir, destas coisas e apesar de todas elas, uma espécie de tranquilidade a que, no Norte, chamam de tenência (sentido de prudência, precaução e firmeza).”

Depois de um tsunami de sintomas que se abateu em casa na virada do ano, entrei também em 2022 com as melhores intenções. Agora, vamos ver se a pandemia dentro da pandemia dentro do pandemônio vai permitir que os planos se tornem realidade.

Pense num sintoma. E ele se abateu por aqui. Febrão, cabeça pesada, coriza, diarreia, dor no corpo (forte), apetite zero, falta de paladar, mega cansaço. Tudo junto e misturado. Ômicron, influenza, flurona, doença cruzada? Vai saber o que foi. Meu filho, que estava em casa, teve vários desses sintomas, porém brandos, e testou positivo. Eu tive tudo mais forte e testei negativo. Sinais trocados em tudo e por tudo. O negativo é positivo. E o positivo é negativo. Não é assim? É bom que seja negativo. É ruim que seja positivo…

Lembro-me de uma fala no filme Desmontando Harry, de Woody Allen: “As duas palavras mais bonitas da nossa língua não são eu te amo, mas é benigno”.  Hoje podemos responder a quem pergunta sobre o resultado do teste: uau! Positivo –  testei negativo! Que embaralhamento.

Eu testei negativo. Mas não tenho muito o que comemorar. Dois médicos me asseguram que tive a praga. Também acho. E de tudo o que mais me impressionou, além da boca que tornava horrível qualquer alimento, foi o mega cansaço. Como de uma hora pra outra nossa energia vai pro ralo e parece que nunca mais vai voltar. Depois de praticamente boa, vencer uma quadra da rua com inclinação ligeiramente ascendente, que eu costumava fazer com os pés nas costas, agora era um obstáculo olímpico. E olha que tomei as três doses da vacina. Imagina se não tivesse tomado.

Mas a energia volta. É só ter um motivo de indignação – coisa não de todo rara neste país. No meu caso, ela aconteceu de cara com a própria empresa chamada por um familiar para realizar meus testes em casa. Um rápido e dois mais demorados, em dias diferentes. Os protocolos de higiene variaram conforme o profissional. O primeiro usou proteção no sapato e luvas na mão. A segunda não usou nada disso e tinha unhas de drag queen. A terceira vestiu avental, proteção de sapatos, luvas, proteção no cabelo. Tudo descartável, mas aparentemente não descartado e usado mais de uma vez. E ‒ pasmem! – nenhum dos três profissionais me pediu documento de identificação. Ou seja: poderia tranquilamente pegar um laudo no nome de outra pessoa. Reclamei por e-mail com a empresa, que nem sequer se dignou a me responder. Continue lendo

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Uma história do futuro

A boa notícia é que a vida não está ameaçada

Epidemias virais como a de Covid-19 dependem um pouco do acaso para começar. É preciso que a mutação certa apareça na hora e local certos. As de bactérias são mais previsíveis. Graças ao fenômeno da resistência, há, neste exato momento, bactérias trocando plasmídeos no corpo de algum paciente e assim forjando uma linhagem de patógenos capazes de debelar nossas defesas farmacológicas. Plasmídeos são moléculas “soltas” de DNA, que podem codificar resistência a agentes antimicrobianos e se transmitem mesmo entre bactérias não aparentadas.

Se uma linhagem de E. coli desenvolveu resistência à ciprofloxacina, por exemplo, pode passar essa característica a uma cepa de, digamos, S. aureus. Médicos já precisam lidar todos os dias com essas variantes resistentes. Um estudo do governo britânico estima que, em escala global, elas já causem 700 mil mortes por ano e, se nada for feito, em 2050, responderão por 10 milhões de óbitos anuais.

Há alguma incerteza em relação a esses números, mas não em relação ao movimento e suas implicações. É que o fenômeno do surgimento de resistência pode ser descrito como uma das leis da biologia. Elas não têm a mesma precisão das equações da física quântica, mas seu valor preditivo está bem estabelecido. E a resistência não vale só para antibióticos mas também para herbicidas, pesticidas e até quimioterápicos contra o câncer.

Rob Dunn, em “A Natural History of The Future”, apresenta essa e outras leis da biologia e antecipa o que devemos esperar se mantivermos os padrões que caracterizam o Antropoceno.

A boa notícia é que a vida não está ameaçada. Mesmo que o planeta esquente 4° C e espalhemos venenos por todos os lados, algumas espécies prosperarão. O problema é que serão espécies que não nos interessam, como bactérias resistentes e mosquitos transmissores de arboviroses, cujo nicho ecológico aumenta com o aquecimento global.

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As muitas sobrevidas de Elza

Um dia, ela disse: Agora eu posso morrer. Tinha 43 anos. Mas não morreu. Chegaria, invicta, aos 91

Na noite de 19 de dezembro de 1973, Elza Soares chegou ao último andar do Maracanã e viu lá de cima o anel do estádio tomado. Eram 131.555 pessoas. Suspirou e disse para um amigo: “Agora eu posso morrer”. Ali se realizava seu sonho: um jogo de despedida para Garrincha, o homem que ela amava e a quem o Brasil devia duas Copas do Mundo e um milhão de alegrias —o Jogo da Gratidão, entre a seleção de 1970 (com o já simbólico Garrincha no ataque) e um combinado de craques estrangeiros. Nunca um jogador recebera tal homenagem no Brasil.

Fora dela a ideia e, graças à sua luta, reunindo ex-jogadores, jornalistas, cartolas e políticos, ele iria acontecer. Fora dela também a exigência de que parte da renda se destinasse a comprar um apartamento e abrir uma poupança para cada uma das oito filhas de Garrincha —até para que cessasse a perseguição a eles. Foi sua primeira vitória sobre a intolerância, o moralismo e a hipocrisia. Daí ela achar que já “podia morrer”.

Mas Elza não morreu. Tinha então 43 anos e viveria outros 48, suficientes para mais uma ou duas vidas. Nenhuma outra artista brasileira teria tantas sobrevidas. Basta somar os dramas, tragédias, declínios, voltas por cima e novos apogeus que ela experimentaria até quinta-feira (20), quando finalmente partiu.

A trajetória de Elza foi ainda mais dura do que se tem dito nos obituários e programas a seu respeito. Ela passou décadas escondendo a idade. Dava a entender que a menina que fora ao programa de rádio de Ary Barroso dizendo ter vindo do “Planeta Fome”, em 1953, era uma adolescente. Não era. Já tinha 23 anos, porque nascera em 1930. E ainda levaria outros seis até ser descoberta por Sylvia Telles na boate Texas, no Leme, em 1959, e levada à consagração na gravadora Odeon.

​Sua vida, portanto, começou aos 29 anos. Foi o tempo que lhe custou para se tornar a Elza Soares que chegaria, invicta, aos 91.

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Perverso

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Neoma. © IShotMyself

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Elza Soares -1930|2022

Quando eu tinha por volta de 10 ou 11 anos passava boa parte do meu dia ouvindo a Rádio Borborema, que na época era a rádio mais importante de Campina Grande, e onde meu pai tinha trabalhado por uns tempos como redator. 

Os programas geralmente tinham uma hora de duração, e durante aquela hora o locutor/disc-jockey (eu ainda não conhecia este termo) escolhia as músicas, tocava, às vezes fazia comentários.

Havia um programa chamado “Ele, Ela e a Canção”. Era um cantor e uma cantora cujas faixas se sucediam alternadamente. Num dia eram Cauby Peixoto e Leny Eversong… no outro eram Ataulfo Alves e Nora Ney… E por aí, ia. E eu me lembro que um dia eu falei para minha mãe: “Se alguém me mandasse fazer esse programa por um dia, eu fazia com Nelson Gonçalves e Elza Soares”.

Conto esse episódio bobo porque é a recordação mais antiga que tenho de Elza, e por ela deduzo que eu já era fã, e era mesmo, porque fiquei comportadamente sentado ao pé do rádio quando ela veio a Campina Grande e fez um programa inteiro cantando no auditório da mesma Radio Borborema, com transmissão ao vivo.

“Beija-me”:
https://www.youtube.com/watch?v=k4deIBUviT8

Lembro que nesse tempo já ouvia falar nela como a maior sambista brasileira, não como um “novo talento que desponta”. E os improvisos em voz rouca, estrídula, suingada, chamavam a atenção. Era coisa para a gente parar o que estava fazendo e ficar à escuta. Era diferente.

“Se acaso você chegasse”:
https://www.youtube.com/watch?v=xp72C7IIuLA&list=OLAK5uy_kuEV1LHg15pJgSQKg9_O0_Ak8thZ4RoJs

A rasgada rouca da voz de Elza era algo que ia além da música, era como se fosse uma ilustração na página impressa de um livro, algo que ia além do texto, trazia uma dimensão a mais, algo completamente diferente mas que fazia parte.

Na época eu percebia esses “efeitos especiais” aqui e acolá em diferentes artistas. Via algo parecido nos “cans-ganscans-gansculans” dos Demônios da Garoa, cujas canções não eram apenas ilustradas por efeitos vocais desse tipo, mas mostravam, apitos de trem ou de guarda, vozerio de botequim, e em canções como “Cidade do Barulho” tinha todo tipo de efeito sonoro. Tinha também Moreira da Silva, onde “O Último dos Moicanos” mostrava não apenas disparos de revólver *”Cuidado Moreira!…”), como galinhas cacarejando, índios ululando e tudo o mais.

Elza era também perita nos duetos de estúdio com outros artistas, e para mim suas gravações com Miltinho, um dos maiores sambistas de todos os tempos, são um documento da liberdade e da alegria de cantar, de dividir, de atrasar, de correr pra pegar lá na frente, de cair na nota certa e ainda dar um floreado a mais.

Elza e Miltinho:
https://www.youtube.com/watch?v=9bTk4OsU_r4

É o que chamamos de suingue, de jogo de cintura, de flexibilidade, de domínio total de uma forma, de uma segurança estabelecida a tal ponto que permite o luxo de se divertir de graça.

Os obituários que rolam desde ontem falam inevitavelmente na relação de Elza com Garrincha, e na época, para um garoto adolescente que era doido por futebol, nada parecia mais correto, porque Elza era o Garrincha da música e Garrincha era a Elza do gramado. Era o encontro de duas almas autênticas, como diria o poeta.

O mundo gira, a Lusitana roda, o tempo vai passando e Elza desaparece do mapa, não por defeito dela, mas porque os anos 1970 foram (pelo menos na minha percepção) uma explosão da música brasileira em todos os gêneros, em todos os estilos. Mas foi, por essa mesma explosão, um período difícil para quem conheceu o sucesso na década anterior; basta lembrar os casos, tão próximos de nós, de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro.

“Língua”:
https://www.youtube.com/watch?v=fsqoCBfucYo

 E de repente apareceu Caetano Veloso em 1984 com um dos primeiros raps brasileiros, “Língua” (em Velô), uma espécie de manifesto em defesa dos nossos jeitos brasileiros de falar, e a certa altura ele gritava: “Fala Mangueira!…”, e surgia aquela voz:

Flor do Lácio, sambódromo,

lusamérica, latim em pó…

O que quer, o que pode essa língua?

Era a voz rascante de Elza Soares, e mais uma vez eu parei o que estava fazendo, para prestar atenção. Os tropicalistas, que cronologicamente estão um degrau mais alto do que eu (estão se aproximando todos da reta dos 80) mais uma vez traziam do fundo do baú os meus cantores de infância, como Gil e Caetano já haviam trazido Luiz Gonzaga (“17 Légua e Meia”, “Asa Branca”) e Gal trouxera Jackson (“Sebastiana”). Agora era Elza.

E me parece que desde então ela voltou a gravar e a fazer shows “com força”, ou quem sabe ela nunca parou; eu é que estava distraído escutando Rita Lee. Não importa: Elza voltou a estar por toda parte, num pique assombroso, gravando discos onde não tinha mais a potência original da voz cheia, de notas longas e flexíveis, mas aperfeiçoou a habilidade na divisão, e principalmente passou a cantar um repertório cujas letras iam muito além das letras alegres e juvenis falando de amor e sensualidade. Continue lendo

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Elas

Jade Jagger.  © TaxiDriver

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Outra daquele tempos – Fraga x Werneck

Não me lembro por que — o Fraga deve saber — o trio de humoristas gaúchos veio a Curitiba lá por 1980. Vieram o Fraga, o Vasquez e o Santiago. Já pensou? O Fraga tinha publicado Punidos Venceremos, o Vasquez já rodava com o Rango e o Santiago ganhava muitos concursos de cartum pelo Brasil. Estava armado o circo. Sei que chegou uma hora que o Solda e eu resolvemos fazer uma homenagem aos ilustres ilustradores visitantes. Seria um rango — pra lembrar do famoso personagem do Vasquez — na casa do Solda.

O que fazer? A gente nem pensou em assar churrasco. Não queríamos passar vergonha, né? Naquele tempo — modéstia às favas! — eu fazia um frango xadrez de dar água na boca. O Solda e eu compramos os ingredientes e partimos pra cozinha da Vera Solda. Eu estava preparando meu primeiro livro de poemas chamado Nuvem sem calças — paródia de um poema do Maiakovski. O Thadeu Wojciechowski escolhia os poemas, o Lee Swain fazia a capa, o Rogério Vichinheski, do laboratório fotográfico da P.A.Z., me ensinava a fazer fotolito.

Voltando ao assunto, a mulher do Fraga veio junto com o trio de gaúchos. Eu, pra me exibir, prometi um exemplar do livro pra ela. Depois, o Solda e eu nos envolvemos com o frango xadrez e tudo correu muito bem. Acho que foi tudo bem, né? Bá, tchê! Gaúcho comendo frango xadrez! Mas que taaaal?!

Algum tempo depois da fantástica visita, em 1981 o livro estava pronto e enviei à mulher do nobre Fraga. Mais outro tempo, recebi uma carta dele. Que surpresa agradável seria se… Isso mesmo, se… Se ele não estivesse me dando um baaaaita puxão de orelhas por ter mandado um exemplar do livro pra mulher dele. Caramba! Ele dizia, mais ou menos, que a mulher dele se fechava no quarto e ficava lendo e rindo com os poemas. E isso não estava certo. Deu ciúmes. Foi motivo de briga entre eles. Naquele tempo não tinha internet. As cartas eram trazidas por carteiros e demoravam — tem gente nova que nunca viu um carteiro! Assim como tem gente que, diz o Woody Allen, pensa que New Jersey é um lugar onde os bifes pastam vivos! Essa piada foi só pra aliviar a tensão que eu senti… naquela hora. Sei que passei bom tempo — ponha bom tempo nisso — pensando no mal que havia feito enviando o livro. Até que um belo dia o Solda me disse que havia sido armação. Eles combinaram de me pregar uma peça e… conseguiram. Coisa de humoristas. Cara, foi um alívio muito grande!

No mais, tudo era uma grande farra! Pode acreditar. Como diz o próprio Fraga no Punidos Venceremos — ainda tenho inveja dele por ter um livro diagramado pelo Miran! — só trocaria meus anos passados por uma coisa: anos ainda amarrotados.

(Rui Werneck de Capistrano é autor de Nem bobo nem nada)

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Léxico da violência

Os inventores dos sujeitos coletivos da História nomeiam inimigos igualmente abrangentes e difusos

Sentença 1: “O PT propõe revogar a reforma trabalhista conduzida pelo governo Temer”. Sentença 2: “A classe trabalhadora exige a derrubada da reforma trabalhista imposta pela burguesia”. A primeira menciona sujeitos específicos (PT, governo Temer). A segunda, que prefere indicar coletividades genéricas (classe trabalhadora, burguesia), pertence ao léxico da violência.

Quem é o “sujeito da História”? Segundo os marxistas, “a história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de classes”. Inflada até o limite, a ideia produziu extermínios de classes sociais inteiras: o Holodomor, na Ucrânia, pelo regime soviético; a implantação das comunas populares, pelo regime maoísta; a ruralização da população urbana pelo regime de Pol Pot no Camboja.

“Jihad: guerra aos infieis!”. Segundo os fundamentalistas, que existem em todas as religiões, o sujeito da História é a comunidade de fiéis. De Maomé às Cruzadas, e delas às guerras de religião na França, a fé produziu rios de sangue que atravessam os tempos. A pulsão do massacre chega aos nossos dias, nas formas do jihadismo, dos atos de terror de cristãos fanáticos, das limpezas étnicas contra muçulmanos.

O “fardo do homem branco”. Segundo Kipling, porta-voz do pensamento imperialista, o sujeito da História é a raça. O racismo branco serviu para justificar a divisão colonial da África, as leis de discriminação nos EUA, o apartheid na África do Sul. (Mas não a escravidão moderna, que prescindiu do conceito de raça). Numa interpretação singular, que identificou raça e nação, funcionou como alicerce para o nazismo.

Racismo não exige diferença de cor. “Baratas” –assim a ditadura hutu qualificou os tutsis, preparando um genocídio inteiramente baseado em teorias raciais. Na hecatombe de exterminismo em Ruanda, algozes e vítimas eram negros.

“A história do mundo não é a história de indivíduos, mas de grupos, não a de nações, mas a de raças – e aquele que ignora ou tenta borrar a ideia de raça na história humana ignora e borra o conceito central de toda a história”. W.E.B. Du Bois, pai-fundador do movimento negro nos EUA, concordava parcialmente com Kipling. Ele não acreditava na noção de hierarquias raciais, mas estava de acordo sobre a questão do “sujeito da História”.

Du Bois desenrolou um fio ideológico que se estende até os racialistas atuais. Dele, nasceu uma caricatura grotesca do Brasil. A sociedade divide-se em duas raças estanques: brancos e negros. Os brancos descendem de proprietários de escravos (sumiram a massa de brancos pobres e os imigrantes). Os negros descendem de escravos (sumiram os negros traficantes ou proprietários de cativos do Império). Os indivíduos do presente representam, pela cor da pele, escravizadores ou escravizados.

A Igreja distribui culpas – e as cobra, via confissão e dízimo. Os racialistas imitam seu método, cobrando da população branca “reparações de guerra” pelos crimes de antepassados imaginários. Mais: por meio da expressão “racismo estrutural”, acusam os brancos em geral de exercitarem o racismo. Divide-se a nação entre criminosos e vítimas – e sugere-se que a redenção depende de uma vingança. Os inventores dos sujeitos coletivos da História nomeiam inimigos igualmente abrangentes e difusos, compondo um léxico da violência.

Mas, paradoxalmente, o racialismo opera como anestésico, atrasando as mais vitais reformas sociais. Quando a polícia exercita o arbítrio na periferia, ignora-se o racismo institucional em nome do “racismo estrutural”: a culpa é dos brancos, não do aparato político que sustenta um policiamento racista. Quando exames internacionais constatam o fracasso perene da educação pública, circunda-se a chaga do apartheid educacional por meio da “solução” das cotas raciais. O léxico da violência é, também, a linguagem do entorpecimento.

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Flagrantes da vida real

O filho de Dona Dalila, Beto Bruel, com Vicente, neto, filho de Renata Bruel e Victor Ribeiro, no Encontro Anual de Teatro, em algum lugar do passado © Maringas Maciel

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Relacionamentos felizes são um tédio

Como tem sido difícil falar sobre o assunto sem parecer ostentação e sem aborrecer os leitores

Você é casada e feliz, não tem como escrever sobre relacionamento”, brincou meu amigo e colunista Tony Goes, há alguns anos. Lembrei-me disso ao perceber como tem sido difícil falar sobre o assunto sem parecer ostentação e sem aborrecer os leitores. As pessoas querem finais felizes, desde que haja uma história complicada, com choro, decepções, grandes aprendizados, superações, volta por cima.

Tony tem razão. É uma tarefa ingrata falar de perdas, decepções e frustrações quando o coração bate tranquilo e alguém que você escolheu para dividir o ar-condicionado te abraça para dormir todas as noites. Com exceção do primeiro ano com meu novo conje, quando cada um de nós parecia estar em lados opostos de um cabo de força, no quesito drama meu relacionamento é um tédio.

Sobre o começo um pouquinho tumultuado, já dividi em detalhes o que não é inédito na vida de ninguém. Expectativas, frustrações, problemas de comunicação, egoísmo. O que talvez não seja tão comum foram os três meses de terapia de casal, propostos por ele, a constatação de que por muito pouco eu teria jogado fora o melhor relacionamento da vida, alta médica e felizes para sempre –ou “que seja eterno enquanto dure”.

Ou anos seguintes, que já estão indo para a casa dos dez, vivemos lindamente, com uma treta aqui, outra acolá, mas nada que valha um parágrafo. Um tédio para quem acompanha o vaivém amoroso de gente famosa. Uma decepção para quem jura que relações são difíceis, que todo homem é um filho da puta, que as mulheres são histéricas, se transformam em megeras e tudo acaba com um odiando o outro. Bem, são quase dez anos, talvez seja muito cedo e eu ainda volte com o dramalhão que se espera.

Por ora, meu único problema é falta de inspiração. Estou sempre atrás de um motivo para reclamar e me identificar com histórias infelizes. De me sentir sobrecarregada, desvalorizada, injustiçada, mal-amada. Talvez eu devesse incorporar um personagem e escrever sobre aquilo que as pessoas parecem querer. Mas minha realidade é uma história de amor enjoativa aos olhos dos outros.

Saio com minhas amigas, bebo, chego em casa de madrugada, faço barulho. No dia seguinte, tenho que aguentar a ironia. “Ressaquinha, hein?”, pergunta meu marido com um copo de água e um oxyboldine, antes de fechar a porta do quarto e garantir que ficarei em paz para curtir o porre.

“Bonita essa roupa, não conhecia.” Talvez agora ele me pergunte se eu realmente preciso de mais um vestido, se não tenho coisas melhores para investir o dinheiro. Nada. Era apenas um elogio, não uma cobrança do que faço com meus rendimentos.

Também não tem ciúme, esse pequeno inferno na vida de casais, usado por muitos como prova de amor. Mentira. Um dia, eu falava ao telefone com a porta fechada e ele quis saber quem era. Foi há oito anos e era apenas curiosidade. Nunca mais. A ciumenta do casal sou eu. Em uns dois episódios, dei chilique, atormentada por chifres da outra encarnação. Duas vezes em quase dez anos é uma média quase saudável. Por enquanto, gosto muito de gostar só dele e fico feliz que ele goste apenas de mim. A gente diz que é para sempre, desafiando o Renato Russo que canta “para sempre, sempre acaba”. Talvez um dia, mas não hoje. Hoje, estamos muito ocupados um com o outro.

Soube que não pega bem postar foto felizinha e falar que meu marido é tudo isso: gato, gostoso, inteligente, parceiro. Fui alertada de que pode despertar inveja, olho gordo e a relação murchar. Nessas horas, penso que eu também devo ser “tudo isso” para que a gente esteja junto.

Nem uma brigazinha? Bem, eu sou discípula de Marie Kondo e ele, às vezes, deve pensar que mora numa república. Mas convenhamos, o máximo que pode render é um parágrafo. Talvez, valha um texto. Não sei o que é ficar de mal, sair de casa, dormir no sofá, encher a cara para amenizar a tristeza, achar que meu mundo acabou. Não faço mais ideia do que seja isso. E não tenho saudade.

Nem os parentes são motivo de discórdia. Tenho medo de que a coisa desande e que meus pais fiquem ao lado dele, tal carinho e respeito que norteia as relações. Meus sogros moram no andar de cima, o que seria o horror para a maioria. Como eles têm uma vida social ainda melhor do que as nossas, não raramente, me esqueço de que somos vizinhos e me surpreendo quando nos encontramos no elevador. Visitas só com aviso prévio. Minha sogra diz sempre que sou sua nora preferida. Ainda que eu seja a única, não deixa de ser um elogio, que nos meus aniversários chega em forma de joia da família. Como eu disse, um tédio.

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Fraga

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Playboy|2000

2005|Brooke Berry.Playboy Centerfold

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Ex-assessor de Bolsonaro confirma rachadinha na família do presidente

Equipe Ultrajano

Em um sobrado simples em uma rua de terra batida no Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro, um ateliê de costura improvisado divide espaço com um amontoado de papéis, recortes de jornal e lembranças dos mais de trinta anos de trajetória política de Jair Bolsonaro (PL).

Entre roupas para conserto e croquis para a confecção de equipamentos de voo livre, mora, sozinho, o aposentado da Marinha Mercante Waldir Ferraz, 1,88 metro, magérrimo e autointitulado o amigo “Zero Zero” do presidente da República. Jacaré, o apelido que ganhou desde os tempos em que acompanhava o ex-capitão na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, não é um bolsonarista qualquer. Ele é bolsonarista antes de Jair ter entrado para a política, antes de o bolsonarismo ter virado uma ideologia para pelo menos 20% dos brasileiros e antes de os filhos e ex-mulheres terem se tornado um motivo frequente de dor de cabeça para o presidente. A amizade entre os dois começou há mais de três décadas a partir da insatisfação que ambos compartilhavam com os baixos salários pagos aos oficiais. Desde então, só se fortaleceu.

Jacaré guarda como relíquias os convites para a primeira posse de Bolsonaro como vereador e para o casamento dele com a primeira-dama, Michelle. Mais importante: mantém intactas a intimidade e a conversa franca com o amigo poderoso. “O tempo todo ele me chama de 71 (corruptela do artigo que define o crime de estelionato), e eu respondo: ‘Eu não sou político, você é que é’.” Pelas mãos do ex-ca­pitão, Jacaré foi contratado para trabalhar nos gabinetes de Bolsonaro na Câmara dos Deputados e de Carlos Bolsonaro na Câmara de Vereadores do Rio — e também recebeu duas condecorações do governo federal, uma delas das mãos do próprio presidente, por “serviços meritórios e virtudes cívicas”. Sem cargo público, ele hoje brilha como expoente do grupo de inteligência particular de Bolsonaro. Diariamente, encaminha, quase sempre antes das 6 horas da manhã, toda sorte de denúncias e suspeitas ao número pessoal do presidente, salvo em sua lista de contatos como JB BR 4. Os dois têm até um código específico para tratar de conspirações e movimentações políticas. “Como tá o clima aí?” é a senha disparada por Bolsonaro, que em seguida recebe informes sobre possíveis apoios para a campanha.

As conversas também são presenciais. Desde a época da transição de governo, Jacaré é frequentador assíduo dos palácios. Na última terça-feira, 18, ele esteve no Planalto, onde se reuniu com o presidente e, segundo ele, colocou os assuntos em dia. É com essa autoridade de quem compartilha da intimidade e da história de vida de Bolsonaro que Jacaré contou a VEJA detalhes do notório esquema da rachadinha, um dos principais motivos de desgaste para Bolsonaro desde o início de seu mandato presidencial (OUÇA OS ÁUDIOS). Em encontros no Rio de Janeiro e em Brasília, nos quais as conversas foram gravadas, Jacaré declarou que houve rachadinha nos gabinetes de Jair, Flávio e Carlos Bolsonaro e afirmou que a advogada Ana Cristina Valle, ex-mulher do presidente, foi quem organizou e comandou a arrecadação irregular de parte dos salários dos servidores, prática que configura o crime de peculato. Jacaré disse ainda que o presidente foi traído e não sabia dos rolos da ex-esposa, que ainda hoje chantageia Bolsonaro, pedindo dinheiro para manter o seu silêncio. “Ela fez nos três gabinetes.

Em Brasília, aqui no Flávio e no Carlos. O Bolsonaro deixou tudo na mão dela para ela resolver. Ela fez a festa. Infelizmente é isso. Ela que fazia, mas quem é que assinava?”, pergunta Jacaré. “Quem assinava era ele. Ele vai dizer que não sabe? É batom na cueca. Como é que você vai explicar? Ele está administrando. Não tem muito o que fazer”, acrescenta, referindo-se a Jair Bolsonaro.

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