A edição de abril do jornal Cândido, editado mensalmente pela Biblioteca Pública do Paraná, recupera parte da trajetória do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), autor do clássico Crime e castigo (1866). O romance foi publicado há mais de 150 anos e ainda tem muito a dizer sobre a forma como encaramos a justiça, a urbanização e as estruturas hierárquicas, diz o jornalista André Cáceres, que assina uma reportagem sobre o livro. Cáceres ouviu especialistas que explicam o período histórico em que a obra foi escrita, o trágico pano de fundo que deu corpo ao romance e a razão de ele se manter tão atual.
O Cândido 93 também traz o primeiro capítulo da nova tradução assinada por Rubens Figueiredo de Crime e castigo, da editora Todavia, que chega às livraria em abril e confere nova roupagem à história do perturbado Raskólnikov, um estudante de Direito que tenta conviver com a própria consciência após cometer dois assassinatos.
O livro, como é praxe na literatura russa, nos faz olhar para nós mesmos de uma perspectiva de largo alcance histórico, diz Figueiredo, em entrevista ao Cândido. Durante o bate-papo, ele fala sobre os desafios de verter a obra para o português e de como questões políticas e religiosas influenciaram Dostoiévski na escrita do romance.
Outros temas
Na coluna Pensata, a escritora e professora de Teoria da Literatura e Literatura Comparada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Maria Esther Maciel escreve sobre o realismo na literatura brasileira contemporânea.
Os três principais romances do autor norte-americano John Williams (1922-1994) Stoner, Butchers crossing e Augustus são tema de um ensaio assinado pelo escritor André de Leones. As obras, que têm em comum o fato de tratarem da fragmentação do indivíduo frente à realidade, segundo o ensaísta, trazem personagens que cada qual a seu modo e conforme suas possibilidades, passam em revista o caminho percorrido, cientes de si e do que trilharam.
O Cândido de abril ainda traz uma HQ inédita de Eloar Guazzelli, poemas de Alberto Lins Caldas e Amanda Vaz, além de um conto de Carlos Eduardo Pereira. A arte da capa é de André Ducci.
Serviço – O Cândido é mensal e distribuído gratuitamente na Biblioteca Pública do Paraná e em diversos pontos de cultura de Curitiba. O jornal também circula em todas as bibliotecas públicas e escolas de ensino médio do Estado. É enviado, pelo correio, para assinantes a diversas partes do Brasil.
Bill Gates, fundador e controlador da Microsoft, pede ajuda aos governos para domar o monstro que ele alimentou, fez crescer e fortaleceu, a internet. Sabe o que diz. Agora precisa ensinar como domar o monstro. E que monstro, esse. Vai dos hackers que roubam senhas e dinheiro de contas bancárias, passa pelos militares chineses que invadem corporações para copiar projetos e segredos industriais, é o paraíso da fake news e sua gêmeas idênticas e univitelinas, calúnia, difamação e injúria.
A internet também supre com energéticos, estimulantes e complementos alimentares a sopa que alimenta e engorda os analfabetos funcionais e os imbecis irremissíveis, incuráveis. Estes últimos não preocupam Bill Gates, cuja Microsoft deve ter desenvolvido filtros específicos para poupá-los deles, uma tecnologia que não nos fornece nas sucessivas atualizações do sistema Windows. Os analfabetos funcionais e os imbecis irremissíveis têm caracteres bem definidos.
Primeiro, analfabetos. Segundo, funcionais. Entendem placas de rua, propaganda do comércio, cédulas de dinheiro. No texto elaborado com raciocínio surge o desastre. Leem até que (1) empacam em frase, partícula, substantivo ou adjetivo; então param de ler e caem na histeria da contrariedade, sem conferir se mais adiante o autor não pensa igual a eles; (2) um fato explode-lhes no cérebro para para contrapor ao fato exposto – sem conferir um e outro e se têm relação.
Não têm sensodo ridículo, são espessos e impérvios. Sob o anonimato no site que o acolhe, diz um deles que sou o esquerdista que nunca criticou os “governos do passado” (sic). Sem querer elogia: pertenço ao judiciário. Ser esquerdista passa, é ponto de vista: quem discorda da direita é de esquerda e vice-versa. Não falar dos governos do passado, atribuo à idade mental do anônimo, três meses, nasceu no governo Bolsonaro. Ser do judiciário, quem dera! O auxílio-moradia resolveria minha vida.
Como seriam os seus gols em dez ângulos diferentes, como os de Messi?
O vento que sopra sobre a crônica esportiva trouxe de novo a discussão sobre quem seria maior, Pelé ou Messi. Assim como o Juca Kfouri, inclua-me fora dela. Como assisti a Pelé jogar, fiquei prematuramente quite com o futebol —podia morrer sem ver mais ninguém, logo não tenho o que discutir. Mas, e quem não teve essa felicidade?
Ah, sim, Messi. Se há algo hoje de que o mundo não está em falta é ele. Pode-se vê-lo em ação duas vezes por semana, pelo Barcelona ou pela Argentina, na TV, no online, no celular e, em breve, talvez até nas nuvens. Está em todas as telas, das de parede a parede às de três polegadas que você carrega no bolso. Seus gols são repetidos mil vezes em dez ângulos diferentes, para que não haja dúvida sobre sua genialidade. E a câmera ultralenta o transforma num Baryshnikov dos gramados.
Em metade dos anos Pelé, que foram de 1957 a 1974, o futebol era filmado em película, não gravado em videoteipe. Pelo alto custo da película, da revelação e das cópias, raramente se filmava um jogo inteiro —só se ligava a câmera quando havia chance de gol. É por isso que, nas cenas de futebol do passado, quase nunca se vê o começo da jogada que resultou na bola nas redes. E, mesmo que todos os jogos tivessem sido filmados, muitos já teriam sido devorados pelas chamas. Então, como ver o que Pelé fazia, digamos, no meio do campo?
Em meados dos anos 60, o videoteipe se instituiu. Mas, também pelo seu custo —cada fita era do tamanho de um tijolo—, os teipes eram apagados depois de exibidos, para que se pudesse gravar de novo em cima. Essa pobreza se estendeu até fins dos anos 70.
O Santos igualmente jogava duas vezes por semana, em São Paulo, no Rio, na Europa, na África e, embora fugazmente, no cinema, sempre podíamos ver as maravilhas de Pelé. Mas você não precisa acreditar em mim. Às vezes, eu também não acreditava no que via.
No Brasil os direitos dos pedestres são amplamente desrespeitados. Muitos discursos, muitas mortes e poucos direitos efetivamente implantados.
Por exemplo, o direito à sinalização corretamente implantada. Na grande parte das rotatórias em Curitiba não há faixas de pedestres, não há sinalização adequada e a pintura da sinalização horizontal, no chão das ruas e vertical, das placas, estão na bacia das almas. Com isto os pedestres curitibanos atravessam alguns metros antes das rótulas, tornando ainda mais arriscadas suas travessias.
Poucas cidades possuem estimativas confiáveis sobre os atropelamentos, sobre os locais que ocorreram e quais as medidas que teriam que ser tomadas para evita-los ou reduzi-los.
Há poucas campanhas educativas e quando existem são mais retóricas que efetivas, sem uma avaliação criteriosa dos seus resultados, mas cumprem o papel de engordar as agências publicitárias, quase sempre as mesmas que produzem as campanhas eleitorais.
Em geral, as cidades foram feitas para os veículos motorizados e não para os pedestres ou outros meios alternativos de transportes.
Em Brasília avaliou-se o impacto da faixa de pedestre a partir de 1996 quando 266 pedestres perderam as vidas ao tentarem atravessar pistas do Distrito Federal, para o recente ano de 2018, com duas vítimas fatais (Correio Braziliense).
Além da sinalização é preciso desenvolver uma cultura de respeito ao pedestre e ao cidadão. Um país com forte histórico de desrespeito aos direitos humanos e de grandes diferenças sociais, ainda não possui o devido respeito aos pedestres.
Atualmente com um grande contingente de motoristas de UBER e outros aplicativos de transportes, permanentemente utilizam o telefone celular ao volante em total desacordo com o Código de Trânsito.
Há os motoristas distraídos em tempo integral que além de não perceberam a sinalização e os pedestres, estão em constante direção perigosa, pela atenção às redes sociais e o envio de mensagens ao volante.
No mundo, em 2018, o trânsito matou 1,35 milhão de pessoas. A Organização Mundial da Saúde informa que a principal causa de mortes entre crianças e jovens, de 5 a 29 anos, foi o trânsito.
A fiscalização também é causa da redução de mortes no trânsito, e não a indústria das multas provenientes de radares, principalmente, os sem licitação, que infestam as capitais brasileiras, sem estatísticas confiáveis e com um histórico de participação de autoridades públicas em propinas de toda ordem.
O fundamental é a conscientização dos motoristas, com campanhas e a educação para o trânsito seguro que devem ser de longo prazo, principalmente, nos bancos escolares.
Melhor que as leis é a consciência do perigo que o trânsito representa às vidas das pessoas, essencialmente, um sentido da responsabilidade coletiva pela segurança de todos.
Algumas ideias, quando nos ocorrem, parecem boas. Mas só parecem
Rita Lee contou certa vez que, um dia, em Londres, viu-se diante da porta da sala de John Lennon no prédio da Apple, a corporação que geria os negócios dos Beatles. Emocionada, não vacilou: lambeu a maçaneta da porta sagrada. Era o mais perto que podia chegar de um membro de John —no caso, os dedos que ele usava para abrir a maçaneta. Não lhe ocorreu que John Lennon não abria portas —todo mundo fazia aquilo por ele. Donde Rita lambeu a maçaneta em vão. Na hora, parecia uma boa ideia. Mas era uma falsa boa ideia.
Outra aparente boa ideia foi a do artista Alfredo Volpi, de pintar uma série de bandeirinhas usando gema de ovo. O resultado ficou deslumbrante. Ele só não contava com que, tempos depois, o ovo usado na tela atraísse certos insetos cascudos apreciadores da dita gema, os quais comeram suas bandeirinhas. Outra falsa boa ideia.
O compositor Ronaldo Bôscoli, então noivo de Nara Leão, resolveu namorar secretamente Maysa, a fim de atrair a cantora para a bossa nova. Também parecia uma boa ideia. Maysa gravou “O Barquinho”, dele e de Roberto Menescal, e empolgou-se com a bossa nova. Mas empolgou-se também com ele e, para terror de Bôscoli, anunciou à imprensa que iriam se casar. Imagine o choque de Nara ao ler no jornal que seu noivo estava noivo de Maysa. Nara rompeu o noivado, abandonou a bossa nova e se juntou à música de protesto. Ali Bôscoli descobriu a falsa boa ideia.
Eu também já cometi várias no gênero. Uma delas, nos anos 70, foi a de escrever um romance. Até aí, tudo bem. Só que tive a ideia de escrever a história ao contrário —como um filme que rodasse de trás para frente. Escrevi 60 páginas e pedi a um amigo, o romancista Marcos Santarrita, que lesse e me desse sua opinião. Ele fez isto e foi franco: “É a pior coisa que já li”.
Reli o material. Concordei com ele e joguei tudo fora. Era uma falsa boa ideia.
Não faz diferença para quem tem a cabeça feita, desfeita ou só a usa para pentear os cabelos: o Golpe comemora-se em 31 de março e a Revolução em 1ºde abril.
O golpe se tornou hoje uma espoleta disparadora de radicalismos
Hoje, há 55 anos, um general em fim de carreira rebelou-se em Juiz de Fora (MG), onde comandava mesas. Em pouco mais 24 horas o governo constitucional do presidente João Goulart estava no chão. Em 1944 ninguém discutia o golpe militar de 1889, e em 1985 não se discutiu a deposição do presidente Washington Luiz. Em 2019 discute-se 1964 porque ele virou um par de unhas encravadas nos pés da direita e da esquerda, uma espoleta disparadora de radicalismos. Na sua versão recente, Jair Bolsonaro (PSL) falou em “comemorar” a data. Depois corrigiu-se, com um “rememorar”.
Bolsonaro tem uma visão pessoal da história. Ele disse que “não foi uma maravilha regime nenhum. E onde você viu uma ditadura entregar pra oposição de forma pacífica o governo? Só no Brasil. Então, não houve ditadura.”
Nesse caso, também não houve ditaduras no Chile e na Espanha. De certa maneira, não teria havido ditadura nem na União Soviética.
A deposição de Jango em 1964 foi um golpe que desembocou numa ditadura constrangida que escancarou-se em 1968. Goulart foi apeado por uma revolta militar vitoriosa e pelo presidente do Congresso, que declarou a vacância do cargo enquanto seu titular estava no Brasil. A posse do presidente da Câmara, no meio da madrugada de 3 de abril, foi enfeitada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, mas não tinha amparo na lei. (Dilma Rousseff foi deposta de acordo com o devido processo legal.)
A deposição de Jango foi pedida e saudada por quase toda a grande imprensa e por multidões que foram à rua festejando-a. Havia mais povo na Marcha da Família realizada em São Paulo no dia 19 de março do que no comício janguista do dia 13.
Se Jango foi deposto para que fosse preservado o regime democrático, esse sonho durou uma semana e se acabou quando os chefes militares baixaram um Ato Institucional que cassou mandatos, suspendeu direitos políticos e demitiu juízes, generais e servidores civis.
A ditadura foi desafiada por um surto terrorista e reagiu instituindo a tortura e a execução de dissidentes como política de Estado. A isso Bolsonaro chama de “probleminhas” e o general Hamilton Mourão, de “guerra”.
A ditadura brasileira está mal digerida porque de um lado alimentam-se teorias como a dos “probleminhas” e a da “guerra”. De outro, chamam-se ações terroristas de “luta contra a ditadura”, quando o objetivo de algo como mil militantes de organizações de esquerda era a implantação da ditadura deles.
Aqui vão dois casos ilustrativos dessas duas fantasias:
Em 1968, o Comando de Libertação Nacional (o Colina, com cerca de 50 militantes) localizou no Rio o capitão boliviano que um ano antes participara da captura do Che Guevara na Bolívia. Ele morava na Gávea. Em julho, cinco meses antes da edição do AI-5, numa ação que envolveu três terroristas, mataram-no a tiros.
Em seu manifesto de criação o Colina dizia que “a luta armada é a única forma de dar consequência à luta do povo brasileiro” e “o terrorismo, como execução (nas cidades e nos campos) de esbirros da reação, deverá obedecer a um rígido critério político”.
O “capitão boliviano” era o major alemão Otto von Westernhagen, e o Colina fez de conta que nada teve a ver com o crime.
(Aos 21 anos, Dilma Rousseff militava no Colina. Não há registro de que tenha participado pessoalmente de ações terroristas.)
Quatro anos depois do assassinato de Westernhagen, o Exército descobriu um projeto guerrilheiro do Partido Comunista do Brasil na floresta do Araguaia (PA). No Natal de 1973, o grupo foi desbaratado, e nos meses seguintes o que seria uma guerrilha transformou-se numa caça a fugitivos que se escondiam no mato. Podiam ser uns 30. Foram todos executados, inclusive aqueles que se renderam, atendendo a oferecimentos da tropa. Cilon da Cunha Brum, o “Simão”, ficou mais de um mês detido antes de ser morto. Isso não é guerra.
Telma Regina Cordeiro Correa, a “Lia”, escondeu-se na mata durante dez meses. Era uma ex-estudante de geografia, expulsa da Universidade Federal Fluminense, tinha 27 anos e estava no Araguaia desde 1971. Ela foi vista por um camponês debaixo de uma árvore, depauperada e faminta. O jornalista Hugo Studart conta em seu livro “Borboletas e Lobisomens” que “Lia” tinha consigo um diário, cujas últimas anotações foram “estou nas últimas” e “não aguento mais”.
Avisada, uma tropa veio buscá-la. Studart acrescenta:
“‘Lia’ foi levantada do chão pelos militares. (…) Foi tratada na base militar de Xambioá. O suficiente para conseguir falar. (…) O soldado Raimundo Melo revelou que ajudou a colocar ‘Lia’ no helicóptero que a levaria a algum ponto da mata para execução”.
Isso é guerra?
Enquanto se falar em “luta armada contra a ditadura” e em “guerra”, 1964 continuará sendo unha encravada, uma em cada pé.
Jair Bolsonaro chega em Israel para visita de Estado. Recebido pelo primeiro-ministro Binyamin Netanyahu (tem mais ipsilones que jogador de futebol brasileiro). A embaixada continua em Tel Aviv, não será transferida para Jerusalém, como Bolsonaro prometeu e não vai cumprir (só Donald Trump, seu modelo, fez isso).
Para não passar por farsante, Bolsonaro estendeu a gambiarra, o escritório em Jerusalém. Para quê? Isso não se faz desde a última Cruzada, em 1272, antes que os muçulmanos corressem com os cristãos de lá. Mais despesa desnecessária, que só serve a evangélicos que buscam Jerusalém para fazer a Via Dolorosa.
Mariza materializava em ilustrações brutais aqueles medos profundos, as pulsões irrefreáveis, os desejos de vida e morte recalcados no escuro mais fundo do país
Morreu Mariza Dias Costa aos 66 anos em São Paulo, nesta quinta-feira (28). Morreu a grande médium do inconsciente social brasileiro, que materializava em ilustrações brutais aqueles medos profundos, as pulsões irrefreáveis, os desejos de vida e morte recalcados no escuro mais fundo do país.
Por causa dessa capacidade de nos traduzir no traço de nanquim e em colagens imprevisíveis, Mariza teve nos jornais o seu habitat. Foi a mais importante ilustradora editorial brasileira, seus trabalhos tendo acompanhado os textos de Paulo Francis (1930-1997) desde os tempos do mitológico “Pasquim”, marco da imprensa alternativa. Ela o seguiria na mudança para a Folha, na coluna “Diário da Corte”, a partir de 1978.
Ilustradora titular do principal colunista do jornal, Mariza viveu tempos de reconhecimento e prestígio, seus trabalhos transformados em pôsteres impressos em área generosa.
Pudera. Era uma mulher de cultura universal e nunca arrogante. Falava perfeitamente o francês, inglês, espanhol e italiano, além do português, é claro. Não passava vergonha no guarani falado no Paraguai, no grego e no árabe, que aprendeu em Bagdá. A glossolalia vinha da vida de globe-trotter do pai, o diplomata Mario Loureiro Dias Costa, que a levava na bagagem para os locais em que serviu.
Não foi uma formação acadêmica, contudo. Adolescente ainda, largou a escola e apaixonou-se pela gravura e pela ilustração, especialmente pelo trabalho de Vão Gogo (pseudônimo de Millôr Fernandes), e o de Péricles, que fazia o “Amigo da Onça”. Da mesma época é o convívio com as substâncias capazes de provocar alterações do estado de consciência, como a maconha, o LSD, o Mandrix (“um horror”), o Artane (“pior ainda”). “Qualquer coisa era consumida avidamente”, me disse ela.
Por esta época, Mariza ocupava o tempo estudando história da arte, Idade Média, Roma Antiga. A atenção, porém, ia longe de reis, rainhas ou papas. Concentrava-se nas criaturas antípodas, aquelas que habitavam as beiras, as proximidades dos precipícios em que a Terra Plana (atual isso, hein?) supostamente acabava.
Com grande entusiasmo, Mariza descreveu-as para mim, em 2013:
“Tinha os cinocéfalos, criaturas com cabeças de cachorros, os panótios, com orelhas enormes que iam até os pés e serviam para voar. Havia as criaturas com olhos na altura dos ombros e a boca na altura do umbigo. Eu era fascinada por essas criaturas, saídas de uma pastelaria do inconsciente”, disse. Mariza comprou toda a pastelaria e trouxe-a ao Brasil.
Homens engravatados, simbolizando o poder, apareciam em suas ilustrações dominados por seres fantásticos, ou explodiam em um grito mudo, de suas cabeças aflorando serpentes, mulheres nuas, caveiras, gremlins, sob um sol triste tropical.
Porque tinha muita tristeza empoçada em Mariza. Em 1977, nasceu-lhe o único filho, Diogo, com problemas incuráveis de malformação cardíaca. Nas poucas vezes que falou sobre o assunto, ela fez questão de dizer que o problema do menino não teve relação com as drogas: “Nesse período, eu não usava nenhuma droga. Só cigarro de tabaco mesmo.”
Com dois anos e meio, depois de muita luta, Diogo se foi. Mariza mergulhou em uma depressão sem fim. O gênio dentro dela reagiu criando uma arte mais poderosa, mais acre, mais violenta, mais pesada, enquanto ela mesma, no convívio, tornava-se mais e mais doce, gentil e generosa.
Sempre às voltas com problemas financeiros (ela nunca lidou bem com números, nunca conseguiu nem recitar a tabuada do três), mesmo assim Mariza oferecia perfumados e saborosos jantares em sua casa na Lapa, em que cumulava o convidado de delicadezas.
Desde 1999, Mariza ilustrava a coluna semanal de Contardo Calligaris, a quem considerava um amigo distante. Para complementar a renda, de tempos em tempos, a mulher magricela, pernas fininhas, a cabeça sempre flamejante porque insistia em tinturas de cabelo com tons de vermelho fosforescente, percorria as mesas da Redação da Folha, oferecendo aos repórteres e editores os originais de ilustrações já publicadas no jornal, vendidos na xepa da necessidade.
Passava das 23h desta quinta-feira (28), quando a grande Mariza, médium do inconsciente social brasileiro, como eu disse acima, resolveu sair para comprar jornal. Um mal súbito e ela foi levada ao Hospital das Clínicas, em Pinheiros. Não resistiu. Não se sabe ainda de que ela morreu. Eu só consigo me perguntar que notícia ela terá lido antes do fim.
Laura Capriglione
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