Tem uma bruxa irônica a verter humor negro no Senado. É a única explicação para a coincidência de, exato no dia do massacre de Susano, o senador Flávio Bolsonaro (PSL/RJ) ter protocolado projeto para liberar a fabricação de armas e munições no país.
Dizer que é irracional, contra a ordem das coisas e o senso comum elementar chega a ser redundante: eles sempre estiveram em falta no Brasil. Atribui-se a Oscar Wilde a frase: os EUA saltaram da barbárie para a decadência sem o intervalo da civilização.
A “era Trump e Bolsonaro”, nome da palestra que o ministro Ernesto Araújo fará semana que vem nos EUA, por aqui significa que entre nós a barbárie é a constante onipresente. Jamais teremos o consolo da decadência. Falta-no o pressuposto da civilização.
Surge um substituto para a última do papagaio e do português
No passado, os brasileiros, ao se encontrarem, iam logo perguntando: “Sabe a última do papagaio?”. E, sem esperar resposta, trocavam piadas sobre ele, dos milhares que existiam. Era bonito. Enquanto outros povos veneravam a águia, o falcão ou o condor, o papagaio era o herói nacional. O brasileiro via nele qualidades que admirava —safo, malicioso, lúbrico. Mas, ou essas qualidades nunca existiram ou os papagaios se extinguiram, porque cessaram as piadas.
Outra favorita era a última do português. O brasileiro também as criou, aos magotes, e não eram uma vingança contra o colonizador, como se pensa, mas contra o patrão. Da Independência até ontem, os portugueses dominaram no Brasil o comércio de azeite, bacalhau, vinhos, imóveis, material de construção, lojas de ferragens, padarias, táxis e muitos outros. Hoje, com a colonização ao contrário —incontáveis brasileiros morando e trabalhando em Portugal—, são os portugueses que passaram a se perguntar: “Sabe a última do brasileiro?“.
Assim, com o sumiço do papagaio e a volta por cima do português, perdemos dois motes importantes. Mas acaba de surgir outro: “Sabe a última do Bolsonaro?”.
Uma história nova e quase inacreditável surge todo dia a seu respeito. E com a vantagem de que não precisa ser inventada, porque ele próprio a fornece. São gafes atrás de gafes, típicas de quem nunca administrou nem uma quitanda e, pelo visto, também não aprendeu a fazer política.
Vai da briga gratuita com os muçulmanos à sua ideia de ter prévio acesso às perguntas do Enem. Da admiração por torturadores e sucessivos insultos aos gays, negros e mulheres ao bate-boca com cantores de rádio. Do chocante xixigate à incômoda vizinhança com bandidos. E, agora, a história de que, em pleno Palácio do Alvorada, ele dorme com um revolver na cabeceira. Se bem que, neste caso, qual é o problema? Getulio Vargas também dormia.
Os primeiros setenta dias do (des)governo de Jair Messias Bolsonaro, sobretudo as mais recentes falas e atitudes de s. exª., comprovam aquilo que boa parte da população eleitora brasileira, aquela medianamente informada, com um mínimo de bom senso e preocupação com o país, sabia: o capitão não tem a menor condição de presidir o Brasil. Ou, como resume, com simplicidade e precisão, frase contida no editorial do último número da revista Veja: “Trata-se de uma dolorosa evidência de que Bolsonaro não faz ideia do tamanho, da dignidade e do decoro do cargo que ocupa”.
Podem os bolsonaristas embevecidos, com a visão e a mente obliteradas pela paixão, rosnar e repetir que a publicação perdeu a respeitabilidade e que cambaleia à beira da falência, mas não há como negar que o editorialista foi de uma exatidão irretocável.
O capitão Messias, ainda que egresso da Academia das Agulhas Negras, nunca exibiu currículo ou estampa para vestir a faixa presidencial. E nesse quesito perde até para Luiz Inácio, que chegou de Pernambuco na carroceria de um caminhão e não teve grande chance de lustrar os bancos escolares. Mas supunha-se que tivesse adquirido algum conteúdo quando envergou a farda ou sentou praça na Câmara dos Deputados. Pura ilusão. Ganhou a eleição sem fazer campanha, sem mostrar programa de governo, sem dar entrevistas e sem participar de debates públicos, graças àquele ainda não suficientemente explicado incidente de Juiz de Fora. E subiu a rampa do Planalto. Para semear asneiras pelas redes sociais.
Pouco nos importa se ele desfila pelos jardins do Alvorada de shorts, de calça de agasalho, de camiseta falsificada do Palmeiras e de chinelos de dedo. Gosto não se discute e se a Michelle está de acordo, paciência. Mas chamar de mentiroso um ministro de Estado que foi companheiro de primeira hora, quando quem estava mentindo era ele próprio; eleger como ministra-padrão dona Damares, aquela do menino veste azul e menina rosa; creditar aos militares a democracia e a liberdade existentes no Brasil; e – absurdo dos absurdos – postar no Twitter imagens obscenas colhidas durante o Carnaval, alegando ter a postagem fins pedagógicos, constituem posturas não só reprováveis como degradantes. Um vexame internacional.
Tirante essas presepadas, que vêm desde quando Messias nem havia ganho o pleito e assumido o poder, o governo ainda nem começou a governar. As mazelas nacionais continuam e se agravam, o futuro da economia é incerto, a saúde pública agoniza, a violência e a falta de segurança crescem. A reforma da previdência, tida como a joia da coroa, está em marcha lenta, carece de credibilidade e destina-se ao fracasso, sobretudo pela ausência de liderança e pelas infaustas intervenções presidenciais.
A preocupação é geral. Os palacianos, especialmente os generais que compõem o governo e que, volta e meia, são obrigados a explicar ou desmentir o chefe; o empresariado, os políticos, a comunidade nacional e até os eleitores que elegeram Bolsonaro estão assustados, com medo do porvir.
A cada dia é um novo desarranjo verbal, ninguém segura a língua e o raciocínio enviesado do homem. Até quando pretende ser engraçado é um desastre. Aquela do ministério igualitário em gênero: dos vinte ministros, dezoito são homens e duas mulheres, “mas cada uma delas equivale (sic) por dez…” – foi de doer.
Renato Aragão, Dedé Santana, Mussum e Zacarias, os trapalhões originais da TV e do cinema, faziam rir; as trapalhadas do atual ocupante do trono presidencial provocam sobressaltos e, quando não fazem chorar, envergonham o país.
P.S. – Dois atiradores deixaram ontem pelo menos sete mortos e vários feridos e depois se mataram em uma escola de Suzano (SP). Qual era mesmo o motivo para armar a população, eminentes capitão-presidente e ministro Moro? Ah, sim, para oferecer mais segurança às pessoas…
É uma tarefa ingrata avaliar o governo de Jair Bolsonaro, pois erros muito primários geralmente não permitem análises aprofundadas. Claro que isso facilita para os bolsonaristas que ainda mantêm-se fiéis à missão de protetores desse sujeito sem noção. Fica tudo no preto e branco, o que desobriga de pensar. Mas o que temos não tem nada de estimulante para quem encara a política com seriedade. Governo muito ruim cria desânimo até para fazer oposição, mesmo porque é de uma insalubridade danada o debate com esta militância crente em qualquer bobagem que venha de cima, neste governismo chucro e deficiente de argumentos.
Bolsonaro é esse tipo que antes da reforma da Previdência sequer ter passado por comissões técnicas do Congresso já foi adiantando o que podia ser negociado para baixo na proposta de seu governo, até mesmo limites de idade. O que se faz com uma capacidade de expressão assim tão asnática? Nem dá para citar Maquiavel, muito menos Aristóteles. Na verdade, no assunto não cabe falar nem no Karnal.
O capitão que virou presidente é também o ativista que posta vídeo pornográfico para mostrar para ao povo brasileiro coisas feias que não devem ser feitas. Sorte nossa que o gajo não é contra a tortura, senão iria passar uns filminhos legais para ilustrar sua indignação. Mas com viagem marcada para um encontro em poucos dias com Donald Trump, sabe-se lá que links quentes que não vai pegar no tête-à-tête com o homem que ele mais admira no mundo.
O nível do grande líder é tão baixo que perto dele mesmo uma figura tosca como o general Mourão foi se agigantando. Com Bolsonaro como referência, Mourão passa até por intelectual, representa o equilíbrio e, dado o temor de que tudo vá à breca, depois de vestir o pijama o general linha-dura virou garantia de segurança até para a democracia.
Agora com os olavistas fora do governo a tendência é de maior perda do vigor do pensamento. Não se sabe como ficará o conteúdo ideológico e intelectual do governo. Kit-gay, terra plana, globalismo, KGB, canibais, pedofilia, Foro de São Paulo, birra com Georges Soros, feminazis, abortistas, birra também com Gramsci, extrema-imprensa, comunas, uma porção de assuntos essenciais na pauta ideológica de Bolsonaro podem ficar de fora do debate, com a discussão ficando restrita ao COF, o cursinho de filosofia que o professor Olavo de Carvalho ministra da distante Virgínia.
O problema é que a mensalidade é cara: 60 paus. E de vez em quando o mestre inconteste ainda pede uma graninha para pagar seus impostos atrasados. Eu, hein? Vou-me embora ser oposição em Pasárgada.
Se o pai não dissesse coisas piores, se o filho não fosse apenas a cópia cuspida do pai, seria de meter o menino em colégio interno de monge trapista. Claro que, como sempre, a carapuça cai nas cabeças da hidra brasileira, a família Bolsonaro. Ontem o intelectual da estirpe, o deputado Eduardo, cometeu mais uma sobre o atentado que matou a vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes.
Como inevitavelmente o crime seria associado à proposta de liberação do uso de armas, promessa de campanha do pai, tema caro e hobby da família, o deputado montou um daqueles raciocínios tortuosos bem dele: “Arma mata tanto quanto o carro”. Qualquer bolsoignaro puxaria o silogismo bolsonárico ao final para ridicularizar os críticos das armas: “Então, se proíbe arma, proíba-se o carro”.
O discípulo de Olavo de Carvalho não pretendia essa conclusão, longe disso. Ele não buscava conclusão nenhuma, os raciocínios da família pertencem a outra ordem, não identificada pelos fundadores da lógica, de Zenão de Eléia a Aristóteles. Os raciocínios bolsonáricos são como a minhoca, que Millôr dizia ser autêntico absurdo, porque não tem pé nem cabeça. Como os produtos das mentes bolsonaras.
Os ‘raciocínios’da família B, como este último, superam o limite antes ultrapassado por Dilma Rousseff. Se puxarmos a temática das armas na regência quatrina bolsonárica, tem ainda o ministro Onyx Lorenzoni, que equiparou os liquidificadores às armas no risco às crianças. E sem mudar a lei para exigir porte de liquidificadores às crianças.
Tempos atrás, em meio a tantas fake news da época, surgiu uma fake news que despertou atenção: espalhava que não havia mais fake news. O povo gostou e passou-a adiante. Já tinha havido fake news demais, o país precisava de algum sossego. Pelo menos nos tímpanos.
Mas não perdurou. Logo apareceu, vindo não se sabe de onde, uma fake news no sentido inverso. Monopolizou as conversas. Dizia que novas fake news viriam e que seriam incontroláveis. Porém, ao contrário da expectativa, só a fake news maior se disseminou, de tal jeito que por um período nem espaço houve para fake news inéditas.
Após semanas de incessante repetição de uma única fake news, estouraram duas outras de uma só vez. Uma corrente fakenewszeira insistia que de agora em diante as fake news só seriam difundidas se fossem de fontes fidedignas; outra divulgava que as fake news somente se alardeariam caso não fossem alarmantes. Houve confusão, claro. A população não sabia qual fake news era mais confiável para desconfiar. Dias terríveis: qualquer fake newszinha em torno da situação ficava monstruosa de uma hora para outra.
Então, uma fake news sutil se ergueu, devagarzinho, até virar um boca a boca nacional. Não passava de murmúrio, nada preocupante: insinuava que as fake news – todas! – estariam diminuindo. Apenas essa fake news, no cenário incerto, não decrescia, pior, se avantajava. Por isso a informação era ora ouvida com descrença, ora com descrédito, e repassada na base do muito antes pelo contrário. O clima era propício a mais fake news e elas choveram, embora a meteorologia até propagasse outra coisa.
Como tudo que sobe desce, os dias subsequentes ganharam calmaria, nem uma mosca sem fundamento se ouvia. As fake news se mantinham condizentes, à beira do crível. Falsa aparência. Na surdina, aqui e ali, começaram a pipocar fake news, inclusive que ia faltar pipoca. Eram fake news que nem pareciam fake news – eram coerentes, consistentes, convincentes. Ou pelo menos assim soavam, opinava outra fake news sobre tais fake news.
Bem, isso é passado. O que se ouve agora é que a invencionice estaria moderada. Há controvérsias, claro. Já apregoam a incapacidade brasileira de criar fake news como antes. Cochicham sobre improvisos com fundo de verdade. Enfim, nada conclusivo, e ainda tem uma versão que conclui às avessas.
Nas águas das fake news, esse oceano de Lavoisier, as marés de inverdades se sucedem, com voltas, reviravoltas e revoltas. Dizem que a difusão infundada e profusa de fake news é falta do que dizer. Ou do que acreditar, insinuam outras fake news.
Agora que os suspeitos do assassinato de Marielle Franco já estão presos, o terreno para fake news volta a fertilizar: vão dizer que por trás dos assassinos não há mandante. Antes que apareça, lanço aqui minha desfake news: acho que há até comandante.
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